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Bailado Infantil

sábado, 16 de maio de 2009

Biografia breve de Louis Braille

Louis Braille nasceu na pequena aldeia francesa de Coupvray, no distrito de Seine-et-Marne, a cerca de 45 km. de Paris, no dia 4 de Janeiro de 1809. O pai, homem de certo prestígio na região, era seleiro ou correeiro. Aos três anos, quando brincava na oficina de trabalho do pai, ao tentar perfurar um pedaço de couro com uma sovela, aproxi- mou-a do rosto, acabando por ferir o olho esquerdo. A infecção produzida pelo acidente expandiu-se e atingiu o outro olho. O menino ficou completamente cego.
Contando com o amor e fiel apoio dos pais, Louis acostumou-se logo à nova situação. Com o auxílio de uma bengalinha, ia à escola, onde demonstrou em pouco tempo inteligência superior aos meninos da sua idade, pois decorava e recitava as lições que ouvia, espantando os professores com a sua inteligência brilhante.
Aos sete anos consegue ingressar na instituição de Valentin Haüy, um homem culto e de nobre coração, que, em 1784, fundara em Paris uma escola para instruir os cegos e prepará-los para a vida. Haüy, apologista das filosofias sensistas - defensoras de que tudo depende dos sentidos -, adapta o alfabeto vulgar, traçado em relevo, a fim de que as letras fossem perceptíveis pelos dedos dos destinatários.
Também, por essa época, Charles Barbier de la Serre, um capitão de artilharia, aperfeiçoava um código através de pontos, que podia ler-se com os dedos e que era usado para velar os segredos das mensagens militares e diplomáticas, a que chamou "escrita nocturna" ou "sonografia".
Um encontro com Teresa von Paradise, concertista cega, foi decisivo na sua vida. Teresa idealizara um engenhoso aparelho para ler e compor ao piano, que fascinou Braille. Aprendendo música com ela, tornou-se rapidamente organista e violoncelista. Aos quinze anos foi admitido como organista da Igreja de Santa Ana, em Paris.
Nessa altura seus pais já tinham morrido, assim como o seu grande amigo Haüy, director do Instituto que se transformara no seu lar. Como dedicasse grande parte do seu tempo à educação dos novos alunos, aceitaram-no como professor do Instituto.
Rapaz educado e agradável, era recebido nos melhores salões da época. E foi num desses salões que Braille conheceu Alphonse Thibaud, então conselheiro comercial do governo francês. No meio de uma conversa Thibaud perguntou-lhe porque não tentava criar um método que possibilitasse aos cegos não apenas ler, mas também escrever.
A princípio, Braille irritou-se com a sugestão, pois achava que a tarefa devia caber aos que viam e não a ele. Reconsiderando, começou a admitir a possibilidade de realizá-la, mesmo sendo cego.
Foi então que começou a trabalhar no código de Barbier. Após três anos, o jovem estudioso conseguiu o que queria: o sistema dos pontos em relevo representando letras. A ponta de uma sovela, o mesmo instrumento que lhe tirara a visão, passara a ser o seu instrumento de trabalho.
Geralmente, aponta-se 1825 como o momento em que o jovem aluno inventa o sistema (que mais tarde veio a ter o seu nome).
Todavia, apenas em 1829 publica a primeira edição do trabalho, intitulado "Processo para escrever as palavras, a música e o canto-chão, por meio de pontos, para uso dos cegos e dispostos para eles". Deu-lhe forma definitiva na segunda edição, vinda a lume em 1837.
Este sistema é constituído por seis pontos, em duas filas verticais de três, num total de 63 sinais.
Este processo de leitura e escrita através de pontos em relevo é usado, actualmente, em todo o mundo. Trata-se de um modelo de lógica, de simplicidade e de polivalência, que se adapta a todas as necessidades dos utilizadores, quer nas línguas e em toda a espécie de grafias, quer na música, matemática, física, etc.
Uma desilusão o aguardava: dificilmente o seu sistema seria aceite. O capital empregado pelas escolas nos enormes livros para cegos não permitia que lhes fossem deixados de lado de uma hora para a outra. Braille, então com vinte anos, começou a ser procurado pelos alunos do Instituto que lhe pediam lições do novo sistema. Estas aulas tinham que ser realizadas às escondidas, mas serviriam - pensava ele - para difundir o método e provar a sua funcionalidade. Braille tentava, ao mesmo tempo, exibir o sistema nos lugares que frequentava. O máximo que conseguiu foi um ofício, no qual o governo francês agradecia a sua contribuição à Ciência.
De entre os alunos a quem ensinava música havia uma pequena cega, Teresa von Kleinert. O seu talento ao piano era extraordinário, o que animou Braille a ensinar-lhe o seu sistema de pontinhos. Em pouco tempo, Teresa tornou-se concertista de sucesso. Recebida com agrado nos salões da Europa, Teresa difundia, a cada apresentação, o sistema Braille e pela primeira vez os jornais falavam no seu nome, até então desconhecido. A 6 de Janeiro de 1852 Braille morreu, sem chegar a ver reconhecido o seu trabalho. Só dois anos após a sua morte o sistema foi reconhecido oficialmente na França, depois que Teresa se exibiu na Exposição Internacional de Paris. Ao piano, pôde mostrar ao mundo como é que um cego podia aprender a ler e a escrever. Isso tudo, graças a um sistema criado por outro cego.

Aprendendo com paixão

Escrito em português do Brasil.

BRAILLE
Flávio Couto e silva de Oliveira
Dedicado à memória do Professor Valter Alves, do Instituto São Rafael, Belo Horizonte M. G. - Brasil

O traçado da letra cursiva ia se esmaecendo a cada dia, enquanto os olhos apertados tentavam a todo custo distinguir o contraste da escrita no caderno. Óculos muito grossos, nariz colado ao livro e a voz abafada pela proximidade do papel era uma situação comum durante as leituras em voz alta. Sentar na primeira fileira e levantar do lugar a todo tempo para olhar de perto o texto da lousa era também parte da rotina na sala de aula, com a qual eu já me habituara. Um outro hábito que acabou se desenvolvendo, ora mais, ora menos incentivado pelos professores, foi o de sentar em dupla com um colega, para que ele ditasse a matéria ou prestasse algum auxílio extra. Isso era também muito bom, por permitir conversinhas corriqueiras, quase sempre interrompidas pelas admoestações dos mestres, que se impacientavam com o burburinho e com a ocasional falta de atenção dos alunos.
Durante o recreio, ia ficando mais e mais difícil participar das brincadeiras com bola, do futebol e de outros jogos. Ao mesmo tempo, era importante ir adquirindo o necessário fair play para conviver com as brincadeiras, apelidos e implicâncias dos colegas, algumas vezes inocentes, outras vezes temperada com a pseudo-crueldade das crianças e a dos adolescentes. Cegueta, caolho, quatro olhos eram os nomes mais comuns. Tapinhas na nuca, cutucões e dedos nas lentes dos óculos, todos sem autoria definida, eram práticas infringidas contra o meu sossego, mas com as quais eu já me habituara, ora levando na esportiva, ora partindo para a violência física. Nesse último caso, normalmente levava a pior, mas saía gratificado pelo meu sentido de justiça e pela sensação de não me ter deixado humilhar. As adversidades do cotidiano não me incomodavam tanto. Eu possuía uma auto estima equilibrada, reforçada pela educação que recebia de meus pais, que sempre me encorajaram a ser confiante e independente. Só vim a sentir pela primeira vez o gosto amargo do preconceito, quando soube que uma garota me recusara, explicitamente em razão de minha deficiência visual, que eu sabia estar se agravando. A dificuldade para ler agora era tremenda. Nem as grossas lentes me garantiam mais o tênue contorno das letras, que desapareceram quase por completo, dos livros, do caderno, da lousa. Havia, pois, chegado o momento que eu tanto quisera adiar, o de começar a aprender o Braille. Nesse caso, o preconceito era todinho meu. Julgava que o Braille fosse coisa de cego e que, portanto, definitivamente, não era para mim. Mas, no íntimo, sempre soube que, como portador de glaucoma congênito, mais cedo ou mais tarde eu perderia a minha preciosa visão, que mesmo não sendo lá essas coisas, continuava a ser, para mim, tão preciosa. Fonte de equilíbrio físico – e porque não dizer também mental – minha visão me permitia enxergar o azul do céu, o branco das nuvens, o contorno das árvores e das montanhas. Distinguia as cores e o formato dos objetos, mas nunca dispensava o tato, a audição e o olfato, para me auxiliar no reconhecimento de seus detalhes. Já com os meus quinze anos de idade, não mais saía às ruas desacompanhado, como antes. Assim, além do Braille, havia chegado a hora de aprender também locomoção e mobilidade, em miúdos, aprender a usar a temida bengala branca, símbolo máximo da cegueira, o qual eu não fazia nenhuma questão de ostentar, recusando-me terminantemente a freqüentar o instituto dos cegos .
Ocorre que, por essa ocasião, eu manifestara um grande interesse pela música. Como muitos adolescentes dotados de sensibilidade artística, queria de toda maneira aprender a tocar violão e a cantar, inspirado pelos ídolos da MPB e do rock and roll. Arranjaram-me então um professor, o melhor da cidade, que me ensinaria a dedilhar as cordas do instrumento e a criar acordes encantadores. Nos dias que antecederam o da minha primeira aula, mal consegui dormir, tamanha era a minha expectativa e entusiasmo. Na hora marcada, sentado na sala de visitas da casa do professor, juntamente com meu pai, aguardava ansioso pelo término da aula de outro aluno e de onde estávamos, ouviam-se nitidamente límpidos arpejos e solos de violões que tocavam em dueto, aumentando assim o meu entusiasmo. Quando os acordes cessaram, irromperam na sala um senhor e um jovem, ambos de violão em punho. Ao ser apresentado a mim, o jovem me disse que eu era um garoto de sorte, por ter, a essas alturas do ano, conseguido uma vaga para estudar com um dos melhores professores de violão do país, e que eu não perdesse essa magnífica oportunidade. Despedindo-se de todos, o jovem saiu, fechando a porta atrás de si. Um frio percorreu então a minha espinha, ao me dar conta de que meu professor, aquele considerado um dos melhores do país, era um senhor de uns sessenta e poucos anos, completamente cego! Na verdade, o primeiro cego de carne e osso que eu conhecera.
No primeiro dia, conversamos muito, sobre o violão, mas também sobre outros temas: a deficiência visual, como é viver sem enxergar, uma de minhas maiores angústias à época; trocamos impressões com a liberdade de quem compartilha a mesma experiência do não ver. Um, homem maduro, absolutamente realizado, tranqüilo com a vida e com a sua deficiência e a sua profissão; o outro, adolescente, ainda mal tateando os seus caminhos , cheio de expectativas para o futuro, de ansiedades, medos e inseguranças. Éramos, assim, o mestre e o aprendiz, ou por outra, um guru e seu novo discípulo. Pois bem, esse professor, a música, a minha vontade de aprender, meus pais que espertamente armaram toda aquela situação, acabaram sendo os grandes responsáveis pela minha iniciação no universo tiflológico e, especificamente, no das soluções educacionais direcionadas ao atendimento das necessidades de estudantes com deficiência visual.
Fazendo-se passar por desavisado, meu velho professor perguntou-me inicialmente se eu teria condições visuais de ler partituras escritas no sistema comum, em tinta. Depois, de ouvir a minha resposta um tanto desapontada, sorrindo, colocou em minhas mãos um livro muito grosso todo marcado com pequenos furinhos formando linhas em alto relevo e me disse que ali estavam todos os exercícios e as músicas que eu deveria estudar no primeiro semestre de aulas. Era a primeira vez na vida que eu manuseava um livro escrito em Braille, embora eu já conhecesse vagamente o sistema, de tanto ouvir falar nele, principalmente durante o último ano. Sabia que era um sistema de leitura e escrita para cegos, criado por um francês chamado Louis Braille, em 1825, e que a leitura era feita com a ponta dos dedos. Fora isso, eu não sabia mais nada. Então, habilmente, o professor incitou a minha curiosidade sobre o assunto, dizendo-me que quando Louis Braille criou o seu sistema, ele tinha exatamente a minha idade, quinze anos, e que todas as letras e todos os símbolos, incluindo os da matemática e os da música, eram formados da combinação de apenas seis pontos e que esses pontos permitiam sessenta e três diferentes combinações. Quis saber como a escrita era produzida e ele me mostrou uma prancheta de madeira onde se acoplava uma espécie de régua metálica, que abrigava as matrizes dos pontos , chamada reglete. Mostrou-me em seguida um pequeno instrumento pontiagudo parecido com um prego envolto em um suporte anatômico feito de madeira ou de plástico, chamado punção, que servia para furar o papel, o qual deveria ficar preso entre as duas partes da reglete. Explicou-me que o papel deveria ser um pouco mais grosso do que o comum (gramatura 40 kilos, por exemplo) para que o relevo do Braille não se apagasse facilmente. Depois mostrou-me uma máquina de escrever com apenas seis teclas, uma para cada ponto do Braille, e uma barra de espaço para separar palavras. Era a máquina Perkins de datilografia em Braille. Assim, sem perceber, eu estava tendo ali, com meu professor de violão, a minha primeira aula de Braille, contra a qual eu tanto resistira durante um ano. Perguntei a ele se os livros eram escritos com aquela máquina, se eles teriam de ser feitos um a um à mão. Ele riu e me contou que havia impressoras específicas capazes de produzir uma grande quantidade de material Braille em tempo reduzido. Eu, sério ouvia tudo atentamente. Continuando a conversa, o professor tomou um papel, colocou-o na reglete e escreveu meu nome; tirou o papel e me deu para que, com a ponta do indicador direito, eu sentisse pela primeira vez, o relevo do meu nome gravado em Braille. Confesso que nessa hora me bateu uma emoção diferente, ao sentir que aquela primeira palavra, de tão forte significado, estava me reabrindo as portas para o mundo da leitura, o qual eu já julgava perdido.
Percebendo meu interesse, o professor resolveu avançar mais e propôs que eu experimentasse escrever, inicialmente apenas furando todos os seis pontos de cada célula Braille da primeira linha da reglete. Explicou-me que cada uma das quatro linhas da reglete era composta de aproximadamente vinte e oito quadradinhos chamados células Braille e que cada uma dessas células abrigava os seis pontos, a partir da combinação dos quais, as letras eram formadas. Fez-me sentir com os dedos, cada uma das quatro linhas e me disse que a reglete se encaixaria na prancheta, em diferentes alturas. Desse modo, deslocando-a para baixo até o fim da prancheta, podia-se utilizar toda a superfície de uma folha do tipo ofício.
A minha primeira surpresa foi saber que eu deveria começar a furar os quadradinhos, da direita para a esquerda, contrariamente à escrita convencional, que se faz da esquerda para a direita. A razão era simples: como o Braille é uma escrita em alto relevo, ao furar o papel com a punção, imprime-se um ponto em alto relevo no verso do papel. Logo, a escrita Braille, quando produzida na reglete, obedece a uma lógica de espelho, isto é, invertida em relação ao modo de se ler. Assim, para ler o que foi escrito, o escrevente deve tirar a folha da reglete e virá-la do outro lado, para só então escorregar os dedos pelas linhas. Lembrou-me que a leitura se fazia normalmente, da esquerda para a direita. O professor gostava de dar explicações detalhadas. Então, começou a me falar sobre a ordem dos pontos, de um a seis. Na escrita, o ponto um seria, assim, o primeiro no alto da célula, à direita, depois dele, o ponto dois seria logo em baixo do ponto um e o ponto três seria bem abaixo do ponto dois. Completava-se assim a coluna da direita da célula. Nessa lógica, o ponto quatro era o primeiro do alto da coluna da esquerda, da mesma célula, e assim por diante até completar os seis pontos, isto é, o preenchimento de todo aquele quadradinho.
Ao premir os pontos no papel, segurando ainda desajeitadamente a punção e acompanhando a sua ponta com o indicador da mão esquerda, conforme o professor havia orientado, a fim de facilitar o direcionamento daquele interessante instrumento de escrita, completei o preenchimento de toda a primeira linha. Tirei o papel da reglete e então o virei para observar com a ponta dos dedos o resultado daquela experiência: uma carreira de quadradinhos impressos em alto relevo, os quais, ao meu tato, contrastavam magnificamente com a lisura e a maciez do papel.
- É isso - me disse o professor – Para os videntes, as letras se formam a partir de seu contraste em cores com o fundo onde estão impressas. Já para nós, o contraste se dá por meio de pontos palpáveis. O filósofo francês Denis Diderot, que viveu no século XVIII, foi o primeiro a refletir sobre a percepção dos cegos. Inclusive, sua obra A Carta Sobre Os Cegos para Uso dos que Vêem, um clássico da filosofia da época, foi o pontapé inicial para a criação de uma pedagogia voltada para as necessidades especiais das pessoas com deficiência visual. Ele foi quem deu a sustentação filosófica para Valentin Hauy, o primeiro a criar uma escola para cegos, e mais tarde para a própria invenção do maravilhoso sistema de Louis Braille.
Depois de me incentivar dizendo que eu levava jeito para aprender, levantou-se de um supetão, bateu uma estridente palma e num tom animado e resoluto disse que nós já estávamos falando demais e que era necessário um pouco de música. Apanhou o violão e começou a dedilhar a esmo. Eu, sem dizer nada, observava tudo extasiado. “Agora, meu filho, ouça isto” – disse-me ele num tom compenetrado. Pigarreou levemente e, por alguns segundos, fez-se naquela sala um silêncio sacral, o qual aos poucos começou a ser preenchido pela mais bela melodia que até então eu já ouvira. Durante pouco mais de dois minutos, aquele som angelical ocupou cada canto da sala, fazendo vibrar, através de meus tímpanos embevecidos, cada molécula de meu corpo. Ao acabar, disse ele após mais um átimo de silêncio:
- Isto é Villa-Lobos, meu filho, Villa-Lobos. Toquei para você a Mazurka Choro, que é o primeiro movimento da Suíte Popular Brasileira, composta entre 1908 e 1923. Sabe, Villa-Lobos foi um compositor genial. Sua obra para violão solo é, com toda certeza, a maior contribuição para o repertório desse instrumento no século XX. É verdade! Todos os grandes violonistas clássicos, tanto brasileiros como estrangeiros, no mundo inteiro, já se debruçaram sobre as obras desse mestre. Apesar de seu imenso talento para executar vários instrumentos, Villa-Lobos, como todo bom brasileiro, possuía um amor especial pelo violão. Um dia, se você quiser, meu filho, e se dedicar para isso, você também poderá tocar as suas obras. Para a nossa felicidade, a maior parte delas está disponível em Braille. Basta você querer. Assim, quanto mais cedo você aprender o Braille, mais progressos irá fazer com a música.
A essas alturas eu era puro entusiasmo. Já estava até mesmo sentindo uma espécie de orgulho de minha deficiência. Tinha esquecido por completo qualquer vestígio de temor ou preconceito contra o universo dos deficientes visuais. Tudo o que eu queria era aprender o Braille e o que mais fosse necessário para que eu pudesse ser igual àquele culto e talentoso professor. Na mesma semana, eu, que era resistente, já estava freqüentando o instituto dos cegos e descobrindo lá um mundo inteiramente novo, mas estranhamente familiar para mim. Passei então a dividir o meu tempo da seguinte forma: Na parte da manhã, continuava o meu curso na escola regular, onde cursava o primeiro ano do ensino médio, e à tarde ia para o instituto aprender o Braille, aprender a fazer contas com o soroban (uma espécie de ábaco muito utilizado pelos cegos), tomar aulas de locomoção e mobilidade, além de canto e violão, é claro. Lá, conheci muitos rapazes e moças de minha idade, com diferentes graus de perda visual, por meio dos quais acabei aprendendo muito sobre a vida cotidiana das pessoas sem visão. Ganhei novos amigos e aprendi muito também sobre as minhas próprias possibilidades. Sentia como se eu estivesse me reconciliando com uma parte de mim que havia ficado meio de lado no meu processo de amadurecimento.
Em menos de um ano já podia perceber os efeitos positivos que aqueles novos aprendizados começaram a fazer na minha vida em geral, e especialmente na minha vida escolar. A escola onde eu cursava o ensino médio era uma escola pública estadual que contava com uma sala de recursos, onde professores especializados auxiliavam os alunos deficientes visuais transcrevendo provas e exercícios para o Braille, gravando textos em fitas cassete e o que mais fosse necessário para que nós pudéssemos acompanhar normalmente os trabalhos escolares. Parecia incrível, mas além de mim, havia também mais outros cinco alunos deficientes visuais freqüentando a sala de recursos. Enfim, eu não estava sozinho e isso era extremamente reconfortante.
Avancei rápido nas lições de Braille. Minha professora era uma senhora cega muito paciente, mas também enérgica quando necessário. O primeiro exercício que ela me deu para fazer foi o de preencher uma folha inteira com os seis pontos das células Braille, tal qual meu professor de violão havia me ensinado em nosso primeiro encontro. Esse exercício servia para que eu automatizasse a posição de cada um dos seis pontos e ao mesmo tempo praticasse o gesto de furar o papel com a punção. Em seguida, passei ao aprendizado da chamada primeira linha do alfabeto Braille, isto é, as dez primeiras letras do alfabeto comum, que em Braille se escrevem utilizando apenas os pontos 1, 2, 4 e 5, deixando de fora os pontos 3 e 6. Desse modo, a letra A é formada apenas pelo ponto 1; a letra B, pelos pontos 1 e 2; o C, pelos pontos 1 e 4; o D, pelos pontos 1, 4 e 5; o E, pelos pontos 1 e 5; o F, 1, 2 e 4; o G, pelos pontos 1, 2, 4 e 5; o H, pelos 1, 2 e 5; o I, pelos pontos 2 e 4; e, finalmente o J, é formado pelos pontos 2, 4 e 5.
Aprendi que esses sinais também servem para representar os algarismos de 1 a 0, na mesma ordem do alfabeto, ou seja, com os sinais correspondentes às letras de A a J, bastando para isso colocar na frente um sinal indicador de algarismo, representado pelos pontos 3, 4, 5 e 6. Após dominar bem a escrita e a leitura dessa primeira linha, comecei o aprendizado da chamada segunda linha, para cuja formação das letras, basta acrescentar o ponto 3 em cada símbolo da primeira linha. Desse modo, representam-se as próximas dez letras do alfabeto, da letra K à letra T. O passo seguinte é aprender a terceira linha, em que a formação dos símbolos se dá acrescentando-se à primeira linha, o ponto 6, sem se utilizar o ponto 3. a partir daí, começamos a perceber que as letras acentuadas têm um símbolo próprio diferente do das letras acentuadas. Assim, o a (ponto 1) mais o ponto 6 forma um Â; o B (pontos 1 e 2) mais o ponto 6 vira Ê; o C (pontos 1 e 4) vira ì; o H (pontos 1, 2 e 5) vira ü; o I (pontos 2 e 4) vira õ); e o J (pontos 2, 4 e 5) vira W. Existem também os sinais da quarta linha, onde se acrescentam aos da primeira linha, os pontos 3 e 6: A (ponto 1) mais pontos 3 e 6, forma a letra U; o B (pontos 1 e 2) mais os pontos 3 e 6, é igual ao V; o C (pontos1 e 4) mais pontos 3 e 6) forma o X; o D (pontos 1, 4 e 5) mais 3 e 6, é igual ao Y; o E (pontos 2 e 4) mais 3 e 6, é igual ao Z; o F (pontos 1, 2 e 4) mais 3 e 6, é igual ao Ç; o G (pontos 1, 2, 4e 5), mais 3 e 6, forma o É. É interessante notar que essa letra se forma com o preenchimento de todos os seis pontos da célula. Continuando, a letra H (pontos 1, 2 e 5) mais os pontos 3 e 6, formam o Á; o I (pontos 2 e 4) mais os pontos 3 e 6, formam o è; por fim, o J (pontos 2, 4 e 5) mais os pontos 3 e 6, formam o Ú. Existem ainda os sinais da quinta linha, formados somente pela combinação dos pontos 2, 3, 5 e 6. Entretanto, essa quinta linha forma apenas sinais gráficos como ponto final, vírgula, ponto de interrogação etc.
Freqüentando o instituto dos cegos, aos poucos fui descobrindo que o Braille não se resumia ao alfabeto. Era muito mais complexo do que isso. As sessenta e três combinações possíveis entre seus seis pontos faziam que um mesmo sinal, uma mesma combinação de pontos, formasse símbolos diferentes, reconhecíveis conforme o contexto em que apareciam. Assim, os pontos 1 e 5 podiam significar, por exemplo, a letra E, ou o algarismo 5 ou uma nota ré em tempo de colcheia. Fui assim descobrindo a cada dia a riqueza desse maravilhoso sistema de leitura e escrita, que é o sistema Braille e fui também me apaixonando por ele, na medida em que tinha cada vez mais acesso a leituras diversas. Os progressos na escola aumentaram e o resultado disso tudo foi que, inspirado naquele meu professor de violão e também em outros, acabei tornando-me também, não um virtuose do violão, embora a música até hoje me acompanhe, mas um professor, dedicado a possibilitar que outros tantos alunos com deficiência visual possam ter acesso ao mundo da leitura e da informação, utilizando o Braille como uma das estratégias mais eficazes para se atingir esse fim.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Contos fantásticos

A pele do judeu

Intrigado por um dito melancólico de Aberramão III, que em quarenta anos de reinado tinha contado catorze dias de paz, o universitário Rui Telmo meteu-se a pesquisar a vida dos Arabes na Península.Entre volumes obscuros, encardidos de tempo e humidades, encafuou muita tarde da sua juventude na sala de leitura da Biblioteca Nacional, a participar em batalhas, algaras e razias, decapitações à cimitarra, intricadas questões de honra e sórdidas intrigas de serralho, rematadas a trago de veneno ou fio de alfange.Já do muito reler lhe não eram estranhos os desaforos do váli de Saragoça, a traição da Taifa de Mértola e mesmo as polémicas sobre o valor do a nos dialectos árabes peninsulares.Ora, ao começo de uma tarde soalheira, instalado no seu lugar habitual, mesmo por baixo da enorme tapeçaria em que ricos-homens coloridos se atiram pesados golpes de durindana, Rui decidiu-se por uma crónica de Ibne Hafeçune Hamude e foi-lhe dedilhando as páginas de estandartes verdes, alfanges reluzentes, traidores crucificados, corcéis em tropeada e rendilhadas invocações a Alá. Em dado momento, deteve-se num lugar, que transcreveu maquinalmente numa ficha:« ... E mais para poente, junto a uma enseada tranquila onde, para sua glória, Alá consentiu que se edificasse a cidade de Lixbuna, afamada por seu hortos, suas minas de prata ... »Não surpreendia Rui esta notícia das minas de prata de Lisboa, agora desaparecidas, mas cantadas em tempos por todos os geógrafos mediterrâneos, e talvez passasse de largo à sabedoria do emir lbne-Ahmed-ÁI-Rashid, que mandou construir navios de bordo alto para defender os rios das incursões normandas, se junto ao texto, sublinhado, não houvesse uma anotação a lápis, muito sumida, rija de decifrar. Eram versos:
Os lugares em que andeiCom vosco ledo e oufanoNesta tristeza os busqueiMas o que neles acheiFoi a meu dano mor dano1
E, por baixo, um número de telefone.Não deixou Rui de se embrenhar na guerra normanda de Ibne Alimed e de seguir aplicadamente o discurso de Mossul-AlBacr na mesquita de Palmela sobre a ilegitimidade do poder, quando exercido com perfídia, mas voltava amiúde à página anotada, relia os versos, decorava o número e via-se não poucas vezes a indagar sobre a autoria daquela mensagem e a cismar sobre as velhas minas de prata de Lisboa.E, pelo fim da tarde, após sair da Biblioteca, com muita hesitação e receio, decidiu marcar o número numa cabina telefónica perto.Assim travou conhecimento com Magda, que lhe apareceu à noite num pequeno café da Graça, por ele indicado e chamado Rosa Branca.Era Magda muito jovem e pequena e macilenta, de gestos nervosos, indecisos. Os cabelos de um louro triste caíam-lhe soltos, sem vida, pelos ombros magros. Cobria-lhe a cabeça uma desusada boina castanha, em que refulgia qualquer fantasia verde. Vestia saia longa, muito travada, como noutro tempo se usou.Os olhos, porém, eram pardos, enormes, ora claros, ora escuros, de tonalidade azulada, violeta, quase negra conforme a ênfase do seu discurso. A fala, muito surda, doce, lenta, contava coisas antigas, de embevecer Rui que, de vida simples, não imaginava poderem certas frases e encadeamentos algum dia aparecer fora dos livros.- Bem haja por ter vindo - ia dizendo Magda. - Porque ainda lá estarão as minas. Empatizamos com o que nos perturba em Trebizonda, com o que jaz oculto em Mohendjo-Daro, mas curamos mal de sentir as vibrações do que, bem visto, nos está ao alcance. A mim, macera-me o não poder descer às minas, de todos sabidas e que ninguém busca. Oh, este cansaço, este olímpico desprezo pelo que nos foi legado, o desatender estulto das mensagens que ficaram...E assim por diante foi discorrendo Magda. Do mesmo jeito antigo ou estrangeiro contou que deixara a anotação no livro, na esperança que alguém a encontrasse e se dispusesse a partilhar aquela inquietação sua. Magda vivia com os avós, muito velhos, muito inertes, e não possuía mais ninguém. Os versos deixados à margem do livro público haviam sido como a mensagem aleatória que o náufrago atira às águas.E quando no silêncio do café se avantajou o ruído da caixa registadora, na conferência final dos dinheiros, e os empregados, já impacientes, começavam a empilhar cadeiras sobre cadeiras, Magda fixou em Rui os seus grandes olhos, agora de um cinzento límpido como o mar de certas invemias, e convidou-o, tímida, para sua casa.
Que ficava muito, muito longe. 0 táxi deixou-os na esquina de uma rua curta em que havia um chafariz de ferro lavrado, de volutas e nervuras iluminadas por um candeeiro ao perto.A portada, lenta, que Magda abriu, dava para um grande vestíbulo de chão de lajedo preto e branco disposto em xadrez. À direita, dominando a entrada, um mameluco de ébano, de tamanho natural, estendia um facho de que a chama era uma lâmpada redonda e fosca. Subiram por uma escada de mármore larga, forrada por uma espessa passadeira de veludo e, no andar superior, entraram cautelosamente no quarto de Magda.Metade do quarto era ocupado por um elefante de verga, que olhava a porta com uma das patas levantada e a tromba pendida, submissa. Do outro lado, um leito de madeiras negras, com dossel rosa desmaiado, e uma cómoda faziam constrastar tons escuros com o colorido gritante de uma máscara africana, empenachada, hiante, que ali parecia explodir na parede.0 quarto de Magda comunicava com outra sala, que ambos percorriam à luz de uma lanterna retirada de qualquer gaveta. A luz incidia sobre miríades de pequenas estatuetas de pedra, de madeira, ídolos, empilhados à toa por todo o lado. Ao indagar surpreso de Rui, Magda seguiu adiante, evasiva, e nada respondeu.Uma porta baixa dava para um desvão, repleto de antigos trastes. De debaixo de um amontoado confuso de caixas, trapos, restos de mobílias, Magda retirou uma pequena arca, forrada de um couro esverdinhado, muito roto, contendo um in-fólio de encadernação corroída, um compasso e uma régua articulada, de madeira carunchosa, e um rolo informe de uma espécie de pergaminho, encardido e enrodilhado.Quando, de novo no quarto, Magda dispunha aplicadamente estes objectos sobre a cama, um por um e por certa ordem, Rui tomou o pergaminho e começou a desencarquilhá-lo com cuidado. Nisto se atardou algum tempo, enquanto Magda o olhava, à espera, com os olhos agora de um negro muito fixo, concentrado. Ao aperceber-se de que era uma pele humana que desenrolava nas mãos, Rui teve um sobressalto e repeliu-a para longe. Então, quedou-se enervado, fitando os olhos em Magda, com uma surpresa magoada.Sem se mover nada, Magda explicou que se tratava de uma pele de judeu, morto há tantos anos que já não havia que arrepiar nem razão de alarme...Em pouco, estendiam ambos a pele no chão, alisando-a desde o escalpe à ponta dos dedos, com vagar. Consultando amiúde o livro, aberto numa folha coberta de linhas tracejadas e de intrincadas figuras geométricas, Magda, com um marcador, muito compenetrada, marcou todos os sinais de pigmentação da pele.Depois, no amplo terraço da casa, caiado de branco, com o ondular de Lisboa iluminada em volta, foi de novo estendida a pele, cuidadosamente, orientando-a Magda, de certa maneira, no sentido da constelação de Orion.De livro aberto, iluminado pela lanterna, Magda foi traçando linhas sobre linhas, umas ligando entre si os sinais da pele do judeu, outras guiadas pelas estrelas da constelação. Noite fora, Rui assistiu ao trabalhar do compasso e da régua, aos elaborados cálculos em que Magda, de ar absorto, se detinha de vez em quando, aos complexos movimentos do marcador, às sucessivas e pensadas correcções que Magda, quase imperceptivelmente, ia fazendo à orientação da pele esticada.Já muito tarde, a pele agora completamente cruzada de linhas negras, Magda arrumou o compasso, a régua e o velho tomo dentro da arca, apagou a lâmpada e deixou ouvir um suspiro de alívio, triunfal, quase alegre.Travou então Rui pelo braço, fê-lo girar sobre si e apontou-lhe um sítio distante, citando:
E duzentas braças contarás Para levante contadas Mil lhe acrescerás De nenhua guiza desviadas A quem sabes prazerás Graças lhe renderás Cá nas terás achadas.
Se estivessem, além estariam, concluía Magda, atrás dos prédios novos que mostrava no horizonte.Rui conhecia a zona. Eram uns edifícios altos e recentes, junto à extrema de Lisboa. Por detrás havia areeiros, lixos, cabanas de ciganagem.Seguiu-se um longuíssimo diálogo, muito em rebates fugazes sobre pausas largas, muito feito de gestos também, em que ambos comentaram o seu sonho e de todas as formas imaginaram as minas a descobrir. Despediram-se, com o compromisso de se encontrarem no sábado próximo naqueles terrenos, de manhã muito cedo, preparados e equipados para os trabalhos que fossem necessários para devolver uma mina a uma cidade. Era noite alta quando Magda acompanhou Rui à porta. A pele do judeu lá ficou no terraço, espalmada no azulejo, passada dos traços lançados das estrelas.
Encostado a uma velha oliveira estéril, engelhada, retorcida, em cujo tronco nodoso via uma antiga incisão triangular, de bordos musgados e irregulares, Rui contemplava de longe os movimentos precisos, contados, de Magda. Dominado por altos prédios descia para o rio, em direcção a Chelas, um terreno desnudo, ravinoso, aqui e além coberto de entulhos e destroços de barracas.Tinham sido ambos pontuais naquele sábado. Mas Magda não cumpriu o prometido sobre equipamentos e ferramentas. Depositara no saco de Rui apenas a lanterna, antes de conduzi-lo para junto daquela árvore, a partir da qual mediu passos, traçou segmentos de recta, interseccionou triângulos e círculos no solo, com uma pequena vara ali recolhida. Rui estranhava-lhe o vestir, o menos adequado a quem diz querer pesquisar entre torrões e poeiras. Desta vez, Magda trazia um longo vestido decotado, vermelho brilhante, quase refulgente ao sol, e em volta do pescoço faiscava-lhe o que parecia ser um rosieler de prata, pesado, lavrado, em completo contraste com os ornamentos simples do outro dia.Enquanto Magda assim deambulava, medindo linhas e sinais, Rui olhava-a como se a visse dançando uma dança muito antiga e perfeita e confirmava-se-lhe a ideia de que Magda era mais que Magda.Mas já ela lhe acenava à distância. E quando Rui, ofegante, chegou perto, indicava, sem dizer palavra, o fundo de uma fenda larga, pedregosa, muito escorrida de águas e lodos nos invernos.E durante horas Rui fez trabalhar o alvião no sítio que Magda apontara. Ela, entretanto, sentara-se no chão, indiferente à sujidade e, de olhar rodando em volta, distraído, ia trauteando baixinho uma espécie de música litúrgica, que Rui, com a repetição, acabou por fixar:
Pede claudo veni fulgoris Domine Repens tange imum cordem luce.
0 Sol ia muito alto e rugia em volta o rumor da cidade, no auge, quando Magda se calou, a meio de uma estrofe. Então, o alvião rompeu a terra e deu em cavo. Sons de pedras roladas em alude tombaram e um buraco negro escancarou-se. Rui deu-se a manejar freneticamente o alvião, a alargar a abertura, e Magda veio ajudar, ansiosa, quase sôfrega, esgaravatando, retirando torrões às mãos cheias.Apontada para o negrume, a lanterna revelou uma câmara de tectos altos que parecia muito espaçosa. Inesperadamente, Magda deslizou para dentro.E pela abertura a mão de Magda veio solicitar a mão de Rui, que só então reparou em como os seus dedos eram finos e alongados.
Guiado por Magda seguia Rui, agora repeso de ter deixado afastar a abertura de entrada, com o seu cilindro de luz iluminando o chão entulhado da galeria ampla em que Magda o esperava, muito hirta, junto às entradas negras de três túneis. Não cabia a esperança de vê-la resplandecer de novo em qualquer volta das galerias, rompendo o negrume, porque Magda fazia o caminho sempre para diante, e para diante não há retornos.Apenas o brilho fátuo da lanterna, minúsculo e errático, lutava contra a treva nas mãos de Magda, que conduzia a marcha com determinação, sem sinais de parar ou indagar sobre onde estava, porque decerto já o teria sabido, quiçá muito antes, na companhia ou conselho de quem sabe quem.Inquieto seguia, pois, Rui, aos tropeços, forçado a optar entre acompanhar Magda, no suceder das galerias sempre iguais na negrura, e a escuridão total, o delir-se no escuro, o sepultamento.Rui nada dizia e a voz do medo ia-lhe só no arquejar, porque estava lembrado dos seus protestos, gritados há pouco e da face de Magda, para si voltada, mal alumiada da lantema, e na face não havia boca.Também já iam abandonados os pensamentos de arrepender-se, de querer estar algures, de não ter sido aquilo, porque agora o contacto com a vida era aquela presença silente e o foco da lanterna a saltar, descobrindo réstias de chão granulado, entulho, manchas de paredes escalavradas, negras, há tanto tempo, incontável, que o tempo parece que fluiu sempre naquelas funduras.Por mais que dobrasse o passo, tropeçando nos vigamentos que suportavam a abóboda de pedra, Rui sabia que não conseguia chegar perto de Magda, embora ela, em dado ponto, parecesse coxear, balançando fortemente o corpo a cada passo.E quando o filão rebrilhou, numa fita prateada e irregular que se estendia de um dos lados, ao correr da rocha, não era já a lanterna que Magda trazia na mão, mas um archote que crepitava e fazia estralejar pequenas fagulhas, clareando a galeria de uma luz amarelada de perfis incertos, que se reflectia na própria fumarada que produzia e se inclinava e balançava ao ritmo das oscilações do corpo de Magda.E a Rui veio a sensação estranha, inexprimível, de que o corpo de Magda e a sombra de Magda, marcada irregularmente na rocha pelo claror do archote, se confundiam.Entretanto, Magda distanciou-se de Rui, oscilando na mancha de luz da tocha, que aspergia chispas e fumo gorduroso, de que Rui sentia os restos, laivos, cá muito atrás, na penosa e trôpega perseguição que promovia a Magda.Já Rui perdeu Magda de vista no cruzar das galerias e tem que se guiar pelo clarão do archote. Por entre as escoras de madeira que sustentam o tecto, os veios de prata brilham sempre.No íntimo, Rui tem de confessar-se opresso, esmagado pelo silêncio, pelo abandono de Magda e pelo negrume compacto, persistente, destas cavernas.Quando a galeria começou a subir em rampa, o brilho dos veios desapareceu. Rui sentiu-se tropeçar no meio de objectos: talhas grandes, caixas de madeira, infusas aos montes, uma roda descomunal. E a luz do archote de Magda, ao longe, tinha sido absorvida por uma mancha de claridade viva que parecia provir de qualquer abertura para o exterior.A figura de Magda esperava-o, à boca da mina, no ponto em que a luz de fora explodia, vibrante e agressiva. Quando Rui, ofuscado, se aproximou, ressoou um rumor cavo, vindo do fundo da terra, e as galerias estremeceram, com desprendimentos de pedras e estalir crespo das vigas de madeira.O corpo de Magda então cresceu, pareceu encher todo o túnel, todos os espaços em volta, e Rui debateu-se contra um turbilhão zunidor, de cores vermelho-vivas, que o revolveu, suspendeu nos ares e lançou ao chão.Súbito, o redemoinho e o tremor de terra cessaram e no lugar em que Magda se encontrava antes, uma serpente negra e grossa pareceu deslizar, célere, para as profundezas.Rui, aturdido, rompeu a luz e saiu à superfície, perseguido pelo estalar de uma gargalhada áspera, ininterrupta, obcecante, vinda de nenhures.E, a pouco e pouco, a paisagem foi-se-lhe tomando nítida, com suas ondulações de colinas suaves, cobertas de vergéis. Errava um cheiro a limoeiro e romãzeira. Ao longe, a cidade.Entretanto, em volta, a gargalhada transformava-se, intermitentemente, num zumbido irregular, mais e menos acentuado, como se mil besouros invisíveis pairassem em círculo. E foi preciso Rui debater-se contra o aturdimento da luz e a perturbação dos ruídos para fixar as muralhas que corriam ao longo de uma colina, coberta de casario, encimada por um alcácer elevado e lôbrego. Por entre as açoteias das casas caiadas avantajavam-se cúpulas terrosas e almenaras esguias, muito rendilhadas no topo. 0 rio, largo e verde, de águas mansas, estava ponteado de navios multicolores, de vela triangular.Não longe de Rui, à beira de uma oliveira, passava um caminho enlameado, cruzado aqui e além por gente de albomoz garrido, ao trote saltitado dos jumentos.Uma pequena multidão formigava lá em baixo, junto às portas da cidade, guardadas por magotes de soldados que se acocoravam indolentemente, com arcos e aljavas estendidos no chão, ao alcance da mão, e os pesados arremessões encostados às cantarias.Quando Rui chegou à estrada, nem os pés se lhe afundaram na lama, nem nenhum dos transeuntes volveu para ele sequer um olhar. À entrada da cidade, arreceou-se em vão de ser interceptado por qualquer das sentinelas.Ao penetrar numa viela estreita com muros de quintais enfeitados de rosas, confirmou, apavorado, que ninguém ali o podia ver e que não havia contacto entre ele e a materialidade circundante.De roldão correu Rui, ululando, por uma rua apinhada de gente, em que se afadigavam mulheres de rosto velado entre pregões de ourives judeus e de vendedores de tapetes que, numa algaraviada gutural, exaltavam as suas mercadorias.Passou paredes e corpos, passou casas, passou muros, passou gente, ganiu e uivou para ninguém ouvir, gesticulou para ninguém ver, pairante por sobre o solo.Os seus próprios gritos, vãos, misturavam-se-lhe na alma com o estridor das gargalhadas de há pouco e com as litanias dos almuadens que, do alto das almenaras, chamavam agora o povo de Lixbuna para a oração da tarde.
No mesmo sábado em que, em Lisboa, inexplicável incêndio destruiu um vetusto solar, há muito abandonado, nas alturas da Lapa, dois meninos ciganos, a brincar numas terras baldias junto ao Arceiro, descobriram, meio soterrado, o corpo de Rui Telmo, nesse dia vitimado por qualquer aluimento. Os inquéritos policiais nunca conseguiram apurar as causas do alude, nem a razão por que o moço universitário se decidira a escavar naquele sítio.

(1)Do Cancioneiro de Rezende. Francisco de Sousa.


In Contos da Sétima Esfera, Lisboa, Caminho, 1990.

Mário de Carvalho, Biblioteca online do Conto

sábado, 9 de maio de 2009

O sol e o menino dos pés frios

Era uma vez uma casa. Muito grande. Com um tecto altíssimo, nem sempre azul. Uma casa enorme onde habitava uma grande família: uma família tão grande que, por vezes, não julgavam os seus membros que se conheciam. E se deviam amar.
Houve um menino que entrou nesta casa estava ela toda branca. No chão tapetes de neve, cristais de água de uma brancura que estremecia. E as próprias árvores escorriam essa brancura. E frio. Iluminava-a uma estrela tão brilhante que, sobre o tecto, parecia que poisava sobre as nossas mãos.
Ora um dia, em que fazia anos em que esse menino entrara nessa casa, outro menino por ela andava com frio. Pelo chão, pelos milhões de cristais, caminhavam os seus pezitos enregelados. Tanto frio que nem podia olhar a estrela brilhante. Nem os milhões de cristais que pisava.
Uma mulher chorava a um canto dessa casa. E era triste essa mulher. Estava triste e cansada. Na casa nem tudo era belo. Ali estava aquele menino cheio de frio. E, como ele, tantos meninos.
E, já há quase dois mil anos, um menino entrara na asa, que ficou mais clara com a luz brilhante do tecto. O menino entrou só para dizer uma palavra pequenina: AMOR.
Então essa mulher perguntou ao menino dos pés frios:
– Tu não tens a tua casa?
O menino olhou a mulher triste e ficou triste. Ambos estavam tristes. E disse quase envergonhado que não.
– Tu não tens roupa? Sapatos? Um lume? Pão?
A cabeça (tão linda!) do menino ia abanando sempre a dizer não. A mulher triste começou a ter vergonha. Então ela consentia que na sua casa, na casa de todos, de tecto nem sempre azul, houvesse um menino sem roupa, sem lume, sem pão? Ela consentia uma coisa assim? E os outros também?
Escorregaram-lhe pela face já enrugada duas lágrimas transparentes. De água. Água como a que tombava do tecto, como a que se estendia nos mares.
E perguntou mais ao menino:
– E para onde vais? Eu dou-te qualquer coisa para o caminho...
O menino olhou para ela admirado. Não lhe disse para onde ia. Observou-lhe apenas:
– Tens duas gotas de água nos teus olhos que reflectem o céu azul e a lâmpada do tecto. Não sentes?
A mulher deixou cair pelo rosto enrugado as duas lágrimas. A pele, então, ficou-lhe mais lisa. E ela tornou-se menos curva. Ergueu-se. Estendeu, sorrindo, os dois braços ao menino. E disse:
– Fica. Perdoa.
E o menino ficou. Nos seus braços. Encostado ao seu peito. Com os pés aquecidos sobre o campo de neve.
E a mulher entendeu que não adiantava chorar ao canto da casa. E o seu vestido era uma bandeira. E o seu coração uma flor. Com o menino a seu lado.
A FITA VERMELHA
Eu tinha começado a ensinar. Era muito nova então. Quase tão nova como as meninas que eu ensinava. E tive um grande desgosto. Se recordar tudo quanto tenho vivido (já há mais de vinte anos que ensino), sei que foi o maior desgosto da minha vida de professora. Vida que muitas alegrias me tem dado. Mais alegrias que tristezas.
Se vos conto este desgosto tão grande, não é para vos entristecer. Mas para vos ajudar a compreender, como só então eu pude compreender, o valor da vida. O amor da vida. O valor de um gesto de amor. O seu «preço», que dinheiro algum consegue comprar.
Eu ensinava numa escola velha, escura. Cheia do barulho da rua, dos «eléctricos» que passavam pelas calhas metálicas. Dos carros que continuamente subiam e desciam a calçada. Até das carroças com os seus pacientes cavalos.
A escola era muito triste. Feia. Mas eu entrava nela, ou digo antas, em cada aula, e todo o sol estava lá dentro. Porque via aqueles rostos, trinta meninas, olhando para mim, esperando que as ensinasse.
O Quê? Português, francês. Hoje sei, acima de Tudo, o amor da vida.
Com toda a minha inexperiência. Com todos os meus erros. Porque um professor tem de aprender todos os dias. Tanto, quase tanto ou até muito mais que os alunos.
Mas, desde o primeiro dia, compreendi que teria nas alunas a maior ajuda. O sol, a claridade que faltava àquela escola de paredes tristes. A música estranha e bela que ia contrastar com os ruídos dos «eléctricos», dos automóveis da calçada onde ficava a escola. Até com o bater das patas dos cavalos que passavam de vez cm quando.
Porque, mais que português e francês, havia uma bela matéria a ensinar e a aprender. Foi nessa altura que comecei mesmo a aprender essa tal matéria ou disciplina – ou antes, a ter a consciência de que a aprendia.
Eu convivia com jovens (seis turmas de trinta alunas são perto de duzentas) que no princípio de Outubro me eram desconhecidas. Cada uma delas representava a folha de um longo livro que no princípio de Outubro me era desconhecido. Todas eram folhas de um longo livro por mim começado a conhecer. Não há ser humano que seja desconhecido de outro ser humano. Só é precisa a leitura.
Eu tinha agora ali perto de duzentas amigas. Todas aquelas meninas confiando em mim, esperando que as ensinasse; sorrindo, quando eu entrava, assim me ensinavam quanto lhes devia.
Mas um dia. Eu conto como aconteceu o pior. E conto-o hoje, a vós, jovens, que me podem julgar. Julgar-me sabendo este meu erro. E evitarem, assim, um erro semelhante para vós mesmos.
Já era quase Primavera. Na rua não havia árvores nem flores. Só os mesmos carros com o seu peso e a violência da sua velocidade. Gritos de vez em quando. Uma Primavera só no ar adivinhada.
Numa turma uma aluna faltava há dias. Era a Aurora.
Morena, de grandes olhos cheios de doçura. Talvez triste.
A Aurora estava doente. Num hospital da cidade, numa enfermaria. Num imenso hospital.
Olhei o retratinho dela na caderneta.
Retratinho de «passe», num sorriso de nevoeiro de uma modesta fotografia. Tão cheia de doçura a Aurora! Doente, do hospital tinha-me mandado saudades.
– Vou vê-la no próximo domingo – anunciei às companheiras.
E tencionava ir vê-la mesmo no próximo domingo.
Mas o próximo domingo foi cheio de sol. Sol do próprio astro, quente, luminoso. Igual e diferente, ao mesmo tempo, do sol-sorriso das meninas.
E eu, a professora, ainda jovem, que gostava do sol, fui passear. Ver mar? Campos verdes? Flores?
Já nem me lembro. E da Aurora me lembraria se a tivesse ido visitar.
Começava a Primavera.
Adiei a visita naquele próximo domingo, para outro dia, para outro próximo domingo.
Hoje sei que o amor dos outros se não adia.
Aurora esperou-me toda a tarde de domingo, na sua cama branca, de ferro.
Tinha posto uma fita vermelha a segurar os cabelos escuros. Esperava-me, esperava a minha visita, cuja promessa as companheiras lhe haviam transmitido.
Veio a família: mãe, pai, irmãos, amigos, as colegas.
– Estou à espera da professora...
No dia seguinte a doença foi mais poderosa que a sua juventude, a sua doçura, a sua esperança.
A cabeça escura, sem a fita vermelha, adormeceu-lhe profundamente na almofada, talvez incómoda, do hospital.
Sabemos todos já, amigos, que há vida e morte. Também isso temos de aprender.
Não fiquem tristes por isso. Vejam como as flores nascem quase transparentes da terra, como as podemos olhar à luz do Sol, e morrem, para de novo nascerem.
Lembrem-se como de um ovo de um pássaro podem sair asas que voem tão alto em dias de Primavera. T morrem, também, e todas as primaveras nascem de novo. E, sobretudo, lembrem-se do coração de cada um de nós, desta força imensa.
E não adiem os vossos gestos. Procurar alguém que sofra, que precise de nós, nem sequer é um gesto generoso, deve ser um gesto natural que se não adia.
Às vezes até precisamos uns dos outros para dizermos que estamos felizes, contentes. Só para isso. Mesmo felizes precisamos dos outros.
Aurora ensinou-me para sempre esta verdade.
As lágrimas que por ela chorei já não lhe deram aquela visita do próximo domingo.
Nem a mim a alegria de a encontrar sorrindo, cheia de doçura, com uma fita vermelha a prender os cabelos escuros. Vermelha de sangue, como a vida. O Sol. Flores vermelhas.
Aurora era o seu nome. E a sua vida uma manhã apenas que, na minha distracção ou egoísmo, não tive tempo de olhar. Uma manhã com uma fita vermelha. Que lágrima nenhuma pode reflectir.


MATILDE ROSA ARAÚJO

sábado, 2 de maio de 2009

A menina que queria engarrafar o tempo

Era uma vez uma menina chamada Inanna. Ela era muito sabida e só gostava de coisas boas - sorvete, jogar bola, brincar de boneca.
A vida de Inanna era mais deliciosa que bala de hortelã. Acordava todo dia com o sol, conversava com os passarinhos na janela, trocava de roupa e corria para brincar com suas fadas e bruxas dos livros. Quando chovia, era a deusa da vida - cantava e cantava - e as flores nasciam no jardim.
À tarde ia para a escola e lá encontrava seus amigos. E se transformava na estudante que queria crescer logo para fazer o que quisesse dessa vida - ser flor, médica, professora ou qualquer outra coisa. Quando a noite se aproximava, fechava os olhos e dormia com Pinóquio, Peter Pan, Chapeuzinho Vermelho e em alguns dias com a Pequena Vendedora de Fósforos - todos moradores das histórias que seus pais contavam.
Um dia aconteceu uma coisa muito triste na vida dessa menina e lá naquela vida tão bonita começaram a aparecer dias muito iguais e sem alegria.
E Inanna decidiu que queria engarrafar o tempo.
Porque? Porque ela não conseguia aceitar que as coisas boas que aconteciam tinham que acabar assim, assim, sem mais nem menos. Achava que se engarrafasse partes da vida conseguiria manter para sempre, na estante, somente os momentos bons e não precisaria sentir saudades.
Um dia, quando estava no quarto, pensando nessas idéias de gente grande, apareceu, de dentro de um livro uma bruxa! Não era uma bruxa daquelas de mentirinha não! Era uma bruxa muito de verdade, dava até para pegar e apertar. A menina não teve tanta coragem assim, para ir apertando e tal. Mas só de olhar sabia que podia dar um apertão igualzinho aquele que a tia dava na bochecha dela. Mas sabia também que apertão era muito ruim, porque a gente não é de apertar como as frutas do mercado, pra ver se está boa. A gente é de olhar e de abraçar.
E bem devagarzinho, foi chegando perto da bruxa, que olhava desconfiada para aquele quarto cheio de coisas bonitas. De repente desapareceu e apareceu na frente da menina, que levou um susto!
Inanna perguntou: - Qual o seu nome?
- E a Bruxa respondeu: Isthar
- E isso lá é nome de Bruxa?
E a mulherzinha, muito brava, respondeu: - Você está vendo alguma vassoura?
-Não!
- E você já viu Bruxa sem vassoura?
A menina pensou, pensou e achou que aquela mulher tinha razão. Mas se não era Bruxa, o que era ? Como podia ser velhinha, curvada, ter verruga no nariz e não ser Bruxa? Mas ela não tinha vassoura e nem era tão baixinha assim, porque a Inanna tinha 8 nos e a mulher era até mais alta que ela!
A mulher voou sem vassoura e por onde passava uma fumacinha, igual a do gênio da lâmpada do Aladim, a seguia. Será que era uma gênia?
E Inanna ouviu uma história muito difícil de entender. A tal da Isthar era uma deusa, dessas das histórias bem antigas, e já existia muito antes de tudo existir. E dá para imaginar uma coisa dessas? Para não embaralhar a vida das pessoas, controlava todo o tempo do mundo, desde que tudo existe. O dia, a noite e quando estava com preguiça deixava o tempo passar bem devagarzinho e esperava todo mundo dormir para fazer o tempo passar bem rápido, compensando o chamado ‘tempo perdido’. Tinha poderes mágicos – dizia que conseguia controlar o tempo passado, ver o presente, mas nunca conseguia saber do futuro.
A menina, muito assustada, não conseguia entender direito o que significava aquilo tudo.
A deusa explicou: - Você me chamou, lembra? Falou que queria engarrafar o tempo e eu trouxe uma estante pequenininha que cabe dentro da sua bolsa e algumas garrafas mágicas. Quando você quiser engarrafar um momento da sua vida é só esperar ele acabar de acontecer, abrir a tampa da garrafa, esperar ele entrar. Então você fecha e põe na estante.
Mas existem algumas condições para que você possa fazer isso. Uma dessas garrafas não pode ser aberta.
A menina, assustada, perguntou: Mas vou saber qual delas não posso abrir?
E a deusa respondeu: - É fácil, uma delas é mais brilhante que as outras. Essa é a proibida. Mas todas as outras são suas. Depois que engarrafar seu momento feliz você nunca mais se lembrará dele. Mas poderá vê-lo na estante, encostar as mãos na garrafa, sentir aquela coisa boa no coração e, se quiser, poderá entrar na garrafa e viver tudo de novo. Mas quando sair de lá não se lembrará de nada.
A menina adorou aquela história toda. Garrafinhas mágicas...resolveriam todos os problemas de sua vida. Aceitou e agradeceu a Deusa Isthar.
Nos primeiros dias ficou com muito medo de usar aquelas garrafinhas. Mas um dia, após ter vivido um momento difícil, achou que era hora de testar aquela oferenda. Esperou uma noite inteira passar e outro dia chegar.
Quando o sol estava brilhando lá no alto do céu, tomou um sorvete e sentiu muita alegria. O dia estava quente e o vento soprava bem de levinho e aquilo era delicioso. Inanna não esperou – abriu a garrafa e um ventão soprou, soprou igual furacão e lá estava aquele momento, uma miniatura dentro da garrafa – a menina, o sol, o sorvete e até o vento levinho.
E assim, por muitos dias, colecionou seus momentos felizes dentro das garrafas - as histórias que o pai contava a noite, o passeio com os colegas, a nota boa da escola, a viagem até a casa da avó, o batom cor de rosa que ganhou da mãe, o bolo de aniversário e mais um montão de coisas.
Percebeu, intrigada, que as garrafas nunca acabavam.
Quando ficava chateada só precisava escolher um momento engarrafado, encostar a mão e como mágica aquela sensação boa chegava e ela pulava lá para dentro e ficava feliz.
Mas o tempo foi passando e a Inanna começou a cansar daquelas mesmas sensações e percebeu que vivia mais dentro das garrafas do que no mundo de verdade. E como não se lembrava de nada depois que saía de lá, a menina passou a sentir que dentro dela só sobrou um vazio muito grande. Sensações, sem lembranças. E lembrança faz uma falta...mesmo aquelas que trazem a saudade.
Todos os dias olhava a garrafa proibida, que brilhava e brilhava. Às vezes parecia que quanto mais engarrafava sua vida nas garrafinhas sem cor, maior era o brilho daquela garrafa que não podia abrir. Doía até os olhos de tanto que brilhava. A curiosidade foi crescendo, mas ela não ousava desafiar as ordens da deusa..
Certo dia percebeu que só se lembrava das coisas ruins, pois eram aquelas que não tinha engarrafado e sua vida estava mais chata ainda do que antes de conhecer a Isthar.
Começou a chorar baixinho e não sabia mais o que fazer quando resolveu quebrar todas as garrafas, menos aquela que brilhava, pois a bruxa, ou melhor, a deusa, ficaria muito brava! Tem pessoas que a gente não desobedece por nada desse mundo!
Foi uma barulheira danada! Crash, póft, póft, tum, tum, creck, criiiiim, póft!
Quando quebrou sua última sensação, começou aquele ventão dentro do quarto e a deusa Isthar reapareceu, após muitos anos.
E não ficou nem um pouquinho brava com aquela bagunça toda. Você acredita? Deu uma ordem e tudo foi para seu lugar. Até as garrafas foram consertadas! Mas estavam vazias de novo. E depois insistia em dizer que não era bruxa!
Talvez deuses também façam mágicas com seus super poderes.
E, com um olhar carinhoso, Isthar pegou aquela garrafa bonita e brilhante e deu para Inanna. A menina não entendeu nada. Porque agora tinha que abrir aquela garrafa?
A deusa disse: - Se você a abrir nunca mais poderá engarrafar seus momentos no tempo. Tem certeza de que quer saber o que está aí dentro?
E a menina, que estava arrependida de seu desejo de engarrafar seus momentos, resolveu abrir.
A deusa sorria enquanto observava os pensamentos passando correndo pela cabeça da menina. Até pensamento conseguia ler!
E de repente, Inanna fechou os olhos e com muita força abriu a garrafa. Ouviu uma explosão com cheiro de doce! Era o melhor momento de sua vida! A garrafa chamava-se presente. E esse momento e tantos outros presentes nunca mais foram engarrafados, porque Inanna descobriu algo muito valioso: - sensações não têm valor se não forem lembranças.


Fernanda Macahiba Julho de 2008