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Os nossos preciosos amigos

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Bailado Infantil

quinta-feira, 23 de abril de 2009

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Leão Velho

Este é um conto escrito para ser lido numa tarde de Verão, quando as sombras ainda mal gatinham pelo pavimento do pátio, e o coração se desprende do interior da carne, dirige-se para além do horizonte, e ao regressar, o coração, ele mesmo, volta em seu estado puro e selvagem trazendo consigo a síntese de todas as coisas. Para tanto a planície deve ser ampla, a varanda tem de ser térrea, o telhado deve ser baixo, próprio duma região temperada, 38 graus na Latitude Norte. A esse propósito, um pesado Atlas Planeta Agostini existe por ali, e de vez em quando costuma ser folheado com rigor, ainda que neste momento não esteja visível.A porta da sala do bilhar, essa sim, encontra-se aberta e os tacos enfileirados descansam na estante. Lá fora os jornais desportivos estão arrumados sobre o muro, unidos por uma pesada pedra. Sobre a mesa de madeira devem estar pousados três copos, uma garrafa de Cutty Sark e um recipiente de metal envolvido na respectiva toalha. Também a pinça do gelo se encontra alçada na borda, pesada como uma alfaia. Deve acrescentar-se que a mão direita que a maneja é a do proprietário da casa, e essa mão robusta, queimada pelo sol, está coberta de sardas. Não admira. Como sucede aos fins de semana, o proprietário recebe os seus dois amigos chegados, as duas únicas pessoas que à face da Terra lhe parecem dignas desse nome suave. Eles ali estão. Ao todo são três homens encostados nas espreguiçadeiras, bebendo com pequenos goles as respectivas rações de uísque. Tal como seria de esperar, o elemento sonoro desceu para a escala do quase nada, pois para além do ruído dumas aves esvoaçando na direcção da lagoa, tudo quanto corta o silêncio se resume à fina batida do gelo, aos breves cliques do isqueiro, ao rápido riscar do fósforo, ao sopro sobre a chama pálida. Entendamo-nos desde o início – É no interior do coração destes homens reclinados, como se estivessem à beira duma sesta interminável, protegidos pelas telhas de barro, que as coisas acontecem. E no entanto, à primeira vista, dir-se-ia que os três homens o que pretendem é que o tempo os conserve imóveis e intactos. Três homens a viverem aquele interim durante o qual nenhum pensamento volta para trás, nenhum pensamento foge para diante, entregues ao simples desejo de matar o instante, uma forte vontade de suspendê-lo, dilatá-lo, transformar aquele momento num simulacro de eternidade. Nada para pensar, nada para dizer, nada para reclamar. Isso poderá imaginar-se a partir da lagoa, esse sítio geodésico para onde os pássaros convergem. Mas quem deixou um livro aberto ao lado do tabuleiro onde estão a garrafa e o balde, e há umas boas horas regressou da volta pela lagoa, sabe que assim não é. Pelo contrário, os três homens estão parados para organizarem uma acção e prepararem um movimento.Um deles diz – “Passe-me aí o gelo”.Sim, os três homens estão à espera, e precisando melhor, aquela é uma tarde de Sábado. O anfitrião não é conhecido nas redondezas, mas chama-se Santos Manuel, e ele próprio não enjeita esse estatuto de vizinho mistério, ou pelo menos nada faz contra isso, mas quando uma carta se perde há sempre quem saiba a quem pertence. Como já se afirmou, a sua mão é robusta e sardenta, mas ainda não se disse que o seu corpo, em proporção, é bem mais delgado do que o seu pulso, como se um exercício específico lhe tivesse avolumado o braço. Aliás, a sua estatura é meã, quando comparada com a dos seus companheiros, por sinal bem contrastivos entre si. Um deles é baixo e franzino, um homem em abreviado, sumindo-se no amplo espaço da espreguiçadeira. O outro, pelo contrário, é alto, corpulento, e sob o seu peso, ao mínimo movimento, o plástico chia e estremece. E esse contraste entre ambos até nem teria importância, se não se desse o caso de se chamarem os dois homens, respectivamente, Orlando Petit e João Fortaleza, como se os nomes de família tivessem sido premonitórios dos seus atributos físicos. Como se houvesse uma ligação ancestral entre os apelidos e os talhes. Mas essa caricatura, por curiosa que seja, apenas à primeira vista confere um traço de burlesco àqueles dois homens. Quando reunidos, uma pessoa esquece. Naquele momento, o que interessa é que ambos estão concentrados sobre o mesmo objecto. Petit e Fortaleza não param de olhar para o tampo da mesa sobre a qual, para além dos kits da bebida e do fumo, e do livro pousado, se encontra um telefone portátil, e é para aí que os olhares dos dois homens convergem. Esperam que toque, não toca. Aconteça o que acontecer, o melhor é esperar. Agora mesmo o aparelho desencadeia o seu sinal de chamada, e os três homens saltam ao mesmo tempo nas cadeiras, mas quem vai atender é o mais leve, é Orlando Petit. Aliás, o telefone não toca, propriamente, coaxa, e também se move sobre a mesa, imprimindo movimento ao balde e à madeira. Alguém colocou o vibrátil e o som de coaxar na mesma potência. A resposta do lado de cá, também em voz alta, enche o pátio e a casa, pois Petit não responde, Petit grita a plenos pulmões, perguntando no meio do pátio – “Já se encontraram com os guardas? Então, onde é que eles estavam? Não me diga!” Quem agora alcançou o livro e o abriu ao acaso, pode ver Petit a escutar o que do outro lado lhe dizem, pode vê-lo a virar-se e a rir. Os seus olhos pequenos, no rosto miúdo, a fecharem-se de tanto rir na direcção dos companheiros. Já havia desligado e ainda continuava a rir perdidamente. “De que se ri você?”Petit mal consegue pronunciar as palavras de tanto rir - “Calculem que os tipos se viraram para a paisagem quando a furgoneta passou. Podem imaginar uma brigada inteira, de costas para o trânsito, a olhar para as árvores? Os gajos sabem muito bem que podem recolher o dinheiro que lá mandámos pôr debaixo dos pratos, no restaurante mais próximo...”Mas tanto o anfitrião quanto Fortaleza continuam sérios. Continuam estendidos nas cadeiras de espreguiçar que os colocam rente ao chão, e não se manifestam. Entretanto o telefone, tendo voltado ao centro da mesa, não tardou que não regressasse à vibração do coaxo. Como se a hilaridade do amigo franzino não contasse para nada, o anfitrião perguntou – “Petit, você sabe, concretamente, onde se encontra a viatura, neste momento? Você apurou, por acaso, quanto tempo ainda falta para chegarem à Silveira?” O homem pouco encorpado consultou o mostrador do telefone que vibrava sem cessar e respondeu – “Se já chegaram à Silveira não sei, mas a verdade é que já nos chamam de lá”.Então o companheiro robusto, o Fortaleza, ergueu-se com estrondo da espreguiçadeira e fez menção de se apropriar do telefone. João Fortaleza, em pé, em todo o esplendor da sua corpulência, o esplendor do seu ventre proeminente, o esplendor dos seus braços com os quais já emitia insultos ainda antes de falar, ameaçou – “Não atendam esse telefone. Se atenderem, ainda eles vão duplicar a parada. Os cabrões desses filhos da puta começaram por pedir cinquenta contos pela pernoita, depois foram aumentando, aumentando, a última vez que falámos já estavam em duzentos e cinquenta, nada menos do que cinco vezes mais do que tinha sido acordado. Duzentos e cinquenta contos pela pernoita dum animal, ao relento, em campo aberto, é uma chantagem. Grandes filhos da puta. Daqui em diante, sempre que atendermos o telefone, eles sobem o valor com se fosse um leilão de móveis. Francamente, você acha bem, doutor, que vá pagar trezentos ou quatrocentos contos pela pernoita de um animal refugado do Jardim Zoológico? Você já viu o ridículo em que se está a colocar?”“Fale baixo, homem”.Fortaleza falava mais baixo mas mantinha o tom escandalizado – “Quatrocentos, quinhentos contos por uma noite? Seus filhos da mãe. Só lhes digo que vai ser um pratinho dos diabos se isto se sabe...”Fortaleza e Petit tinham começado a deambular pelo pátio, Fortaleza a grandes passadas lentas, Petit, rápido, com pequenas passadas rápidas. Os dois percorriam o mesmo espaço ao mesmo tempo e cruzavam-se diante de Santos Manuel. O proprietário, estendido na mesma posição, quase rente ao solo, olhava para longe, na direcção da lagoa, e permanecia calado como se estivesse a dizer – Quanto vale a pernoita dum bicho daqueles? Seja quanto que for, não importa. Isto deixou de ser um valor, passou a ser um imposto sobre a minha determinação, ou outra qualquer coisa que lhe queiram chamar. Um desejo, por exemplo. Alguém sabe dizer por quanto se arremata um desejo? Para quem estivesse sentado diante do livro aberto, o rosto do anfitrião dizia isso mesmo, e estava de perfil. O perfil nem bulia. Podia-se confirmar, a partir desse ângulo, como a sua cara tinha tudo a ver com a sua mão. Não que o rosto apresentasse sardas, mas a cor da pele oscilava entre o castanho e o rosado. O próprio cabelo, entre o ruço e o branco, conferia-lhe um ar açafroado, como se houvesse descido duma latitude bem mais elevada e a sua tez tivesse feito um esforço considerável para conviver com o sol meridional. Precisamente, a descer, muito vivo, o resplendor do sol batia-lhe na cara. O telefone tinha-se calado por si, ninguém havia atendido. Percebia-se que a mesma obsessão separava os três homens, a mesma obsessão os unia. Deviam estar a formular pensamentos próximos, utilizando palavras próximas, para se referirem ao mesmo objecto, talvez a mesma finalidade. Adivinhava-se que eram três discursos de três pessoas distintas como se fossem uma só. No meio daquele silêncio entrecortado pelos passos dos dois companheiros, cujo som cadenciado produzia alguma coisa de ameaçador e marcial, o proprietário, sempre a olhar na direcção da lagoa, perguntou o que os outros também deveriam estar a perguntar - “E como irá o bicho passar esta noite?”“A última noite do bicho, como será?”Fortaleza não deveria responder. Respondeu. E fê-lo de novo em voz bem menos moderada do que seria conveniente, irrompendo diante do anfitrião, com o dedo apontado – “E vamos perguntar isso pelo telefone? Desde ontem que eu venho a avisar que é melhor ninguém entrar em contacto. Vamos despender mais cem ou duzentos contos, só para mantermos os outros bichos resguardados do nosso? E quanto mais não irão exigir ainda para alimentar o animal? Quanto mais? Afinal o bicho é ou não é para abater? Se é para abater para quê alimentá-lo à grande e à francesa?”A sombra de Fortaleza alongava-se pelo pátio mas as suas palavras, tocadas por uma ponta de cólera, pareciam de novo não atingir o proprietário da casa. Dava para perceber como ao longo dos anos, entre os três homens se havia formado uma espécie de triângulo escaleno, sendo Petit e Santos Manuel muito mais próximos um do outro do que de Fortaleza. A prova é que Petit, como se acordado pelas palavras de Fortaleza, e como se elas não contassem para nada, muito menos o seu tom agastado, pegou no telefone e chamou por alguém com quem se pôs a falar, prevenindo a pessoa, como ele mesmo dizia, dos vários passos concretos para a noite que iria chegar, os diversos cuidados, os vários trâmites inultrapassáveis. Andando de cá para lá no meio do pátio, ouvia-se Petit perguntar - “Já chegou? Como chegou? Chegou estafado? Babado! O que se passou então?” Ouvia-se Petit perguntar e depois já não se ouvia, porque o amigo mais próximo do dono da casa havia saído do pátio e falava agora por entre o arvoredo ralo, incendiado de vermelho, naquele ocaso de Agosto. “Porreiro!” – Ouvia-se. Quando finalmente Petit regressou, já o anfitrião se tinha levantado. Os três homens estavam em pé, olhando-se sem se verem, vislumbrando alguma coisa para além deles mesmos que os tornava próximos e atados uns aos outros por um cinto de natureza indestrinçável. Um grupo de homens inseparáveis quando vistos a partir do livro pousado no regaço. Mesmo assim, era preciso dizer qualquer coisa. O anfitrião disse - “Caro Fortaleza, você parece querer destruir este plano. Você agora está empenhado em desfazer o que fez. Então estamos conversados...” E os três homens sentaram-se em cadeiras de espaldar dispostas em volta da segunda mesa. Por um momento, Fortaleza ficou imobilizado, só depois reagiu – “Destruir eu este plano? Querer desfazer o que fiz?”Não, não era verdade, ele não pretendia destruir nada, pelo contrário, e Santos Manuel sabia-o muito bem. Que ideia era aquela?O companheiro mais forte estava surpreendido, e não era para menos. Desde há muito que os três se encontravam unidos no mesmo projecto, não só porque tinham caminhado unidos a partir do mesmo passado, como a proximidade de ideias e pensamentos continuava a colocá-los diante de metas idênticas. Os três tinham vindo da mesma experiência longínqua ocorrida em territórios amplos, lá onde a vida merecia a pena ser vivida, com tudo o que de melhor existe na Terra, em termos de dimensão, desafio e grandeza. E a esse propósito, quando falavam, eles só proferiam a breve palavra lá, porque se recusavam a referir o nome de países definitivamente estrangeiros, que então faziam parte duma só unidade indivisível, e por isso não só se recusavam a nomear esses países, como a região e até o continente onde tudo isso se passava, de ofendidos que estavam. Ainda que também não nomeassem essa ofensa, para não credibilizarem a realidade que a criara. Às vezes pensavam. Não queriam pensar. Mas vinha-lhes à cabeça a configuração da cidade onde os três se tinham conhecido e vivido, a cidade com seus portos orientais, seus guindastes de braços alçados, seus mercados indígenas coloridos, e seus bairros de caniço perfumados. E havia o banco. Por vezes pensavam no banco. Não queriam pensar. Pensavam. Fora esse banco nacional ultramarino, cujo nome também se recusavam a proferir, que afinal os unira, na altura em que já não eram solteiros mas eram livres. Em posições diferentes, já se vê. Santos Manuel, o anfitrião, fora o director desse banco, enquanto Fortaleza tinha sido um funcionário de base, uma pessoa que vivia diante da caixa a contar as notas com os dedos molhados em almofadas de esponja, unidade atrás de unidade, até os dedos ficarem gretados. Petit havia sido um funcionário intermédio, muito mais próximo do director, no interior da pirâmide de que faziam parte, mas o que os unira não fora o local do trabalho, fora alguma coisa bem exterior à realidade bancária. O que os tornara próximos como se fizessem parte de um clube secreto com sua iniciação, juramento, segredo e missão, havia sido o safari. Dois, três, cinco, vinte safaris que haviam ficado definitivamente gravados nas suas vidas. Os safaris, com os percursos, as cargas, as tendas, as fogueiras, as coutadas, de que haviam fixado os nomes como se fossem quintas de família, e de que no entanto, passado todo este tempo, se recusavam a falar. Nem lembravam. Só involuntariamente lembravam. Como se além de homens fossem também plantas sarmentosas, cujos caules e raízes em parte estivessem lá. E por isso era injusta a insinuação do ex-gerente, Dr. Santos Manuel da Veiga, ao ex-funcionário de base, João Fortaleza. Como homem que havia contado um número infinito de notas, e conhecera nos últimos momentos vividos lá, o que fora o roubo, a vilania, o saque, a ignomínia, e ficara a conhecer a natureza humana, mil vezes mais vil do que a dos bichos, conhecedor de tudo isso, agora, só porque queria proteger o projecto, é que receava a chantagem. Uma chantagem que se não fosse cortada cerce, bem poderia avolumar-se passando da chantagem sobre a pernoita, à chantagem sobre o segredo da operação do dia seguinte. Que o desculpassem, o doutor e Orlando Petit, mas ele era um homem marcado exactamente por isso, pela chantagem. E que desculpassem também se entrava na zona da cólera, mas não admitia que pessoas que se diziam honestas, faltassem à palavra, praticassem o roubo e a extorsão, como norma, tal como vira lá, tanto da parte dos que partiam quanto dos que ficavam. Afinal fora ele quem tinha falado com o administrador da Herdade da Silveira, fora ele quem havia combinado a pernoita apenas por cinquenta contos, e já achava uma generosidade, e por um aproveitamento da situação irregular em que se encontravam, estavam a pô-los de rastos. Fortaleza via turvo, imaginava logo esses anos que não nomeava, o saque que também não nomeava, e ficava transtornado. E por isso pedia desculpa a ambos, mas que não duvidassem de que se encontrava de alma e coração com aquele projecto. Não iria reproduzir, no entanto, tudo o que lhe acudia à cabeça, naquela situação. Apenas iria dizer a Petit e Santos Manuel - “Desculpem, já aqui não está quem falou. Eu só faço o meu papel, eu aviso...”“Fale mais baixo”.“Desculpe”.A tarde descia imponente, os pássaros voando sobre a lagoa faziam parte dessa imponência, desenhando círculos no espaço. A ilusão de que a Natureza emite sinais decifráveis criava a ideia de que os patos-reais chamavam para o movimento. Os três homens seguiam em silêncio o trajecto das aves. À vezes, quando chegava o Outono, era sobre elas que treinavam os dedos. Orlando Petit acabou por dizer - “Estou convencido que em matéria de contas, o assunto já está encerrado. Não ouviram há bocado eu falar com os tipos? Agora vamos mas é pensar no dia de amanhã, no animal a surgir ao fundo, no doutor a aproximar-se, a aproximar-se, no bicho a olhar de frente, no bicho a ganhar alento, a fazer o seu reconhecimento, a atravessar o campo na direcção da água, e o doutor a atirar. Bum! Ouço o segundo bum, bum, e o baque do bicho, primeiro ajoelhado, depois o corpo pesadão a cair por terra. Como lá, no tempo em que nós estávamos lá, os três...”E Petit entrou pela porta da sala do bilhar e voltou, trazendo nas mãos três coletes, três chapéus, três carabinas, sendo só a Winchester para funcionar na manhã seguinte. As outras duas armas iam ser levadas só por companhia. Estavam conscientes de que não havia rigor no que iria acontecer. Era apenas uma imitação do que acontecia lá, um matar saudades de andar com aquilo nos braços, diante do exemplar mais nobre dos cinco grandes, sem terem de se deslocar mais do que umas dezenas quilómetros. E para expor esses adereços, Petit fez desandar o tabuleiro sobre a mesa e empurrou o telefone para o lado. Fortaleza ainda disse – “ Mesmo assim, é injusto ter-me dito aquilo, doutor, eu fiz tudo para que este momento fosse possível. Há três semanas que não faço outra coisa senão preparar o dia de amanhã”.E era verdade.Três semanas antes, precisamente, enquanto o proprietário da casa e Petit jogavam um partida sobre o pano verde da mesa do bilhar, Fortaleza bebia o seu uísque e folhava o seu jornal desportivo, e fora aí, numa das últimas páginas, que havia encontrado a notícia a quatro colunas, com foto e legenda, uma pagela larga sob um título de grande destaque, a chamar a atenção para certo facto. A notícia do facto vinha encimada por um título inconcebível. O título dizia – Rei de Sofala Vai a Abater. E no continuado – O Rei de Sofala, como era conhecido por todos, o soberbo leão oriundo daquela antiga província, inquilino do Zoo de Lisboa há mais de quinze anos, atacado de doença, vai finalmente a abater... Seguia-se a história genealógica, ascensão e queda do respectivo exemplar, uma retrospectiva de vida que ia desde o momento em que havia chegado, ainda adolescente, ao curral onde tinha vivido, comido, acasalado, entristecido, e por fim adoecido, e de onde agora saía para morrer. Calculava-se que ao longo de quinze anos, cerca de dez milhões de visitantes o haviam admirado, tantos quantos os habitantes de Portugal. E a notícia terminava com uma nota implacável, com seu requinte de malvadez medieva–No local do abate, disputa-se quem irá dar o golpe de misericórdia final a tão ilustre felino. Fortaleza havia lido várias vezes toda aquela matéria espúria, até que por fim tinha compreendido e havia berrado – “Miseráveis!”Havia estendido a folha de jornal sobre a mesa verde, fazendo suspender a partida – “Miseráveis, miseráveis! Leiam isto aqui...” Debruçados sobre a página, Petit e o anfitrião tinham-se inteirado do teor da notícia e tal como Fortaleza haviam sentido a mesma perplexidade e a mesma revolta. Tinham vislumbrado um canto qualquer, talvez um canil, talvez um gatil da Câmara Municipal de Lisboa, só Deus saberia como e onde, mas por certo um espaço diminuto, húmido, sombrio, sem honra, onde iria ser abatido um animal daquele porte, às mãos dum magarefe qualquer. Então Fortaleza tinha dito – “Eu seja da cor desta mesa se não conhecer uma pessoa do Jardim Zoológico que me dê este animal”.Santos Manuel, porém, bateu na bola, fez carambola, deixou lá duas bolas dentro do buraco, e só depois disse – “Uma afronta, estou disposto a fazer o que for preciso”.“Mas porquê?” – tinha perguntado Orlando Petit. “Pois somos nós, por acaso, os donos do bicho?”Só nesse instante, olhando para o anfitrião, Petit havia compreendido o verdadeiro sentimento de ultraje que atingia os seus amigos. Ele próprio tinha dito – “Que estúpido! Compreendo, é para o doutor o abater com dignidade. Pois vamos em frente, eu vou também...” E fitou com toda a inteligência da sua alma a imagem do leão de Sofala, captada nos tempos áureos do curral, uma bela fotografia reproduzida a três colunas, ao alto da página. Bela juba, belo nariz, belo olhar enviezado, um olhar cheio de cólera desprevenida, como se não se encontrasse em cativeiro, um olhar de bicho pronto para atacar o quer que se movesse no mundo. Um belo ódio de animal destemido. Como estaria ele agora? Como teria um leão daqueles envelhecido, depois de ter ficado prisioneiro durante toda a vida? Nenhum dos três conseguia imaginar.A verdade é que nessa mesma noite, Fortaleza começou a fazer telefonemas, e Petit retomou velhos contactos. Fortaleza tratou da questão do Zoo, Petit falou sobretudo com gente ligada a transporte de animais. Tão eficazes os telefonemas, que no fim-de- semana seguinte, já o mais importante se encontrava tratado. Fortaleza já tinha tido acesso à ficha clínica do bicho, já sabia que o bicho apresentava uma deficiência grave no olho esquerdo, uma catarata de dimensões invulgares, encontrando-se felizmente o olho direito em estado bastante saudável. Também arrastava uma pata de trás. Às vezes arrastava o quadril e a pata como se os quisesse largar, mas de resto mostrava-se apresentável. Não apresentável para se manter em exposição dentro duma jaula, mas suficientemente apresentável para travar um combate digno, no momento do seu próprio abate. Em vez de tombar sob o impacte duma bala assassina, disparada sob o efeito dum gatilho premido por um bruto qualquer, que tanto podia atingir o bicho como um fardo de palha ou um monte de trapos, em vez disso, era possível, a troco de certa soma, fazer viajar o bicho clandestinamente dentro duma camioneta de transporte de cavalos até uma quinta das redondezas que oferecesse as condições necessárias. E a Herdade da Silveira, inóspita, selvagem, desactivada, reduzida durante os últimos anos a uma modesta criação de avestruzes, oferecia ao mesmo tempo a planura e os cômoros necessários para o efeito. Fora nesse entendimento que Fortaleza negociara a pernoita do animal a troco de cinquenta contos. Ninguém poderia imaginar que o preço fosse aumentando à medida que o administrador inventava perigos que correriam as aves, quando afinal a criação se resumia a uns trezentos bicos mal emplumados. Fortaleza não imaginava que o montante fosse subindo, à medida que se falava dum duplo círculo de arame necessário para albergar o velho felino, à medida que o próprio Fortaleza exigia uma celha especial para a água, e outros requisitos imprescindíveis. Mas também a Petit, encarregado do transporte, a vida não havia sido facilitada. As poucas viaturas de que o país dispunha para fazer deslocar cavalos, pareciam estar todas tomadas com corridas no exterior. O amigo que lhe tratava desse aspecto oferecia-lhe em troca um carro de transporte de suínos, situação que seria devidamente salvaguardada com a colaboração da Guarda local. Nesse ponto, fora o próprio Santos Manuel quem não havia estado de acordo. Não admitia que um leão com aquela envergadura e aquele passado viajasse numa viatura destinada a suínos. Seria o mesmo que salvar o bicho duma humilhação para lhe infligir uma outra, e ele não saberia dizer qual delas seria a mais grave. De asco, havia cuspido no chão. Fora então encontrada uma terceira via. Consistia em fazer viajar o animal dentro duma caixa de transporte de carne recentemente desactivada, com a vantagem de oferecer condições de dignidade à altura de albergar o grande gato da selva em viagem. Acontecia, porém, que esse transporte corria sérios riscos de ser apreendido, e se tal acontecesse, a ilegalidade seria grave. Para tanto, Petit encarregou-se de estabelecer uma cadeia eficaz junto das brigadas no dia em que o animal viajasse, a troco de certo montante, e sobre esse tema, o montante, Santos Manuel sempre havia dito o mesmo – “Avance, avance, o que conta é o que está em causa. E o que está em causa não tem preço…” E o anfitrião não só tinha passado três cheques de somas avultadas, como ainda estava disposto a assinar os que fossem necessários.Esse fora o ponto da discórdia. Mas agora, que já haviam discutido o assunto, e já quase se haviam desentendido, uma vez novamente entendidos, retomavam o bom caminho em conjunto. Os três estavam de acordo, os três examinavam as armas e experimentavam os respectivos coletes à luz risonha do entardecer. A conversa assumia a coerência própria que antecede os grandes momentos de acção. Petit, que no último momento havia retomado os contactos interrompidos por Fortaleza, junto do administrador da Silveira, achou por bem fazer um último balanço da situação. Confirmava-se que o bicho havia chegado nervoso, cansado, esfomeado, respirando sacudidamente, mas ele havia pedido que lhe fosse servido um bom naco de carne, tendo sugerido mesmo que lhe dessem antes uma ave, ou mesmo duas aves. Havia precisado que não importava que fossem vivas ou mortas, mas se possível que fossem vivas, atadas pelas patas. O importante é que alimentassem o bicho. Quanto a água, nada. Tinha ficado combinado que a água ficaria para o dia seguinte, para a hora do acontecimento. Estava confirmado que o bebedouro fosse uma celha que se visse, pois o bicho precisava de sentir a água, e já não tinha boa vista, melhor dizendo, tinha má vista, só um olho funcionava. Tinha mesmo dado a indicação de que entre uma celha comprida e uma celha quadrada, seria preferível a quadrada, uma vez que a Herdade da Silveira, infelizmente, não dispunha de um bom espelho líquido. Em suma, o bicho teria a sua refeição de fim de dia, disporia de um recanto afastado das aves corredoras para poder passar a noite em paz, teria o seu recanto calmo de pernoita, e seria solto pelas oito horas da manhã, ficando a celha de água, para a qual seria suposto dirigir-se, suficientemente longe do local do amalho a fim de tornar possível acontecer a caçada.Petit falava baixo – “Estou a ver o animal ainda com uma bela juba, a dirigir-se para o espelho de água. Estou a vê-lo de narinas no ar, a sentir à distância a emanação do líquido...”Também João Fortaleza, reconciliado com o antigo director, tinha-se posto a sonhar em voz alta – “Pois então, pois então. Um bicho fica cego e trôpego, mas até ao último dia de vida, tem os instintos por si. O problema da vida de um homem é que acima do instinto tem a honra. O dever de um bicho é seguir o seu instinto. O dever de um homem é contrariá-lo. Pergunto-me a mim mesmo quando é que esta coisa estúpida aconteceu à humanidade…” A noite tinha descido sobre a casa. A terra quente embrulhava-se na escuridão. Os três homens sentiam-se bem, envolvidos nela. Não era necessário acrescentar mais nada para se saber que os três estavam de acordo, e todos estavam de acordo porque não diziam nada. A cumplicidade era isso. De facto, ninguém sabia quando a honra havia começado a lutar contra o instinto, ninguém sabia como nem sabia se tinha valido a pena. Talvez por isso mesmo essa luta tivesse sido a mãe da fala, possivelmente fora a honra o que teria feito falar a humanidade. Ou pelo contrário, talvez a fala tivesse criado a honra. Às vezes, em pleno Verão, esse tipo de assuntos enchia páginas inteiras de publicações coloridas. Sabedorias divulgadas em fórmulas simples, nunca muito fiáveis, mas sempre muito instrutivas. Petit lembrava-se de ter lido alguma coisa sobre o assunto, Santos Manuel não se lembrava de ter lido nada, mas ao contrário dos seus amigos, estava convencido de que a honra, ela mesma, era uma casa dentro do instinto e não uma adversária. Duvidava que assim não fosse. Quando se duvida, porém, o melhor é passar de imediato à acção, prova para todas as divagações, o que no caso concreto significava passar à preparação do dia seguinte. E a esse propósito, já ali estavam o bornal, o cantil, os fósforos, o isqueiro, a faca do mato. Lá fora o todo-o-terreno estava atestado, o motor lubrificado, tudo perfeito, tudo impecável, tudo revisionado, como lá. Só faltava agora tomarem qualquer coisa, por certo, um jantar improvisado, como lá. Quem retirou o livro de entre o tabuleiro e os coletes de caça, e o levou nas mãos para o quarto de trás, bem o sabe. Nesse instante, Orlando Petit chamou a partir da cozinha – “Já cá está. Aproximem-se para o jantar”.A refeição consistia dumas sanduíches preparadas à pressa, duas facadas em cada papo-seco, duas lambidelas de manteiga, fiambre e queijo a entremear. Fortaleza ainda andava à volta do todo-o-terreno, a lembrar o percurso real que os separava do redil improvisado onde se encontrava o animal, uns quarenta quilómetros, não mais, e já se dirigia para a cozinha, só que Santos Manuel, completamente envolvido com a jornada do dia seguinte, encontrava-se esticado na espreguiçadeira e chamou – “Porque não se come aqui? Nem mosquitos há...” Então Orlando Petit trouxe as sanduíches, trouxe os líquidos, muito gelo, e sentados na borda das espreguiçadeiras, começaram a comer curvados, a boca junto dos joelhos, como se fosse antigamente e estivessem lá. As migalhas a espalharem-se em redor dos sapatos, a serem pisadas e transformadas em nódoas pelo pavimento, mas não fazia mal, não existia ninguém por perto para os admoestar, estavam só a petiscar, estavam a jantar como naqueles belos tempos e naqueles lugares longínquos, como se estivessem lá, em pleno acampamento. Era necessário dizer alguma coisa? Não, não era necessário. Mas Orlando Petit disse - “Você deveria deitar-se cedo, Santos Manuel. Está tudo combinado. Aqui o Fortaleza carrega as armas e as trouxas, e eu vou adiante, fazendo de pisteiro. Mas você deite-se cedo, trate-me dessa pontaria. Quantas munições há?”“Não muitas. Só para aí dez vezes mais do que as necessárias...” “O que quer dizer com isso?” E os três homens, até ali completamente enlevados na perspectiva da manhã seguinte, pararam de mastigar. Santos Manuel deixou mesmo a sanduíche a meio e carregou de novo no Cutty Sark.Aliás, não era a primeira vez que Santos Manuel se deixava assaltar pela ideia de que poderiam ir encontrar o animal completamente aniquilado. Ele e os seus companheiros tinham preparado a acção no pressuposto de que o animal estaria válido para um bom enfrentamento. Mas se ao contrário do que estava previsto, o bicho não oferecesse luta? Se o bicho não se levantasse do amalho, não se movesse, ou caminhasse tão manco que nem desse para uma pessoa levantar a arma e atirar? Nesse caso o que faria? - Perguntava-se o anfitrião. Por certo que não iria abater um animal à falsa fé, não iria alvejar um bicho moribundo, fingindo que estabelecia com ele um combate. Não, não iria. Nesse caso, passaria a arma a um dos seus companheiros e um deles que o abatesse, se quisesse. A menos que ele mesmo se aproximasse do animal, e olhos nos olhos, colocados ambos numa posição de lealdade total, frente a frente, como se fosse um animal e o seu dono, ambos animais e reciprocamente donos, o abatesse por caridade. Mas só admitiria isso, no caso de o bicho sofrer.E então passava-lhe pela cabeça o desenho de um gesto muito especial. Se o bicho não se levantasse do chão, nem tudo estaria perdido. Santos Manuel aproximar-se-ia , ajoelhar-se-ia, faria descer o seu próprio corpo à altura em que estivesse o corpo do bicho, e só então iria abatê-lo, ajoelhado. E ao imaginar esse procedimento, sabia que não iria ser nem o último a proceder desse modo, nem primeiro, porque ele mesmo em pessoa, havia assistido a uma extraordinária cena dessas, lá. Por ocasião de um safari daqueles que só poderia ter acontecido, lá. A cena extraordinária ocorrera numa coutada muito especial, a mais importante de todas, aquela cujo número também se recusava agora nomear, a coutada que recebia os condes de Aznar e a filha de Franco por convidados. Daquela vez, os batedores chamavam por um leão muito especial, um bicho de juba preta, que apesar de alvejado nunca fora atingido, continuando a aproximar-se do acampamento, rugindo com um atrevimento indecente. Constava mesmo que havia devorado pelo menos um batedor, duas semana trás, e agora, vários eram os caçadores que o desejavam como troféu. O enervamento era muito, pisteiros e caçadores-guias seguiam com toda a precaução, terreno adiante. Dona Dolores Franco em seu fato de corte impecável seguia a meio da caravana. A ele, director do Banco, haviam-lhe dado a distinção de seguir muito próximo da Señora. A certa altura, o grupo tinha-se apeado e embrenhado no mato, avançando na direcção de onde provinha um som rouco, misto de rosnado e rugido, um latido soprado que fazia estremecer as ervas, o som do bicho incólume, o comedor de homens. Haviam caminhado uns trezentos metros por entre os pastos altos, com o coração a bater descompassado, mas ao contrário de todas as previsões, a meio duma clareira, o bicho havia aparecido colado ao chão, estropiado, sem se mover. Tinha a cabeça posta nas ervas secas, o corpo encostado ao pé duma árvore, e como mostra da sua bravura, só rugia e resfolegava, como se fosse um trovão, olhando em frente. Então, como ninguém parecesse disposto a abater o comedor de gente já ferido, um troféu que não serviria para nada, o acompanhante da Señora havia encontrado uma solução castelhana extraordinária. Tinha avançado na direcção daquela enorme cabeça aureolada de barba escura, que jazia a olhar odiosamente para o grupo de homens que se aproximava, ainda a farejar, ainda a soprar pelas narinas, o acompanhante havia-se ajoelhado e só depois, cara a cara, sob o risco de o bicho se levantar, correndo esse risco formidável, havia atirado aos ombros do animal. Fora um momento inesquecível, que havia testemunhado e guardado para sempre, no centro do coração memorável. Pois com as devidas distâncias, seria precisamente desse modo que iria proceder, se acaso o bicho que se encontrava na Herdade da Silveira já não reagisse, já fosse só um pobre animal cansado, colado ao chão. E pensando nessa hipótese dolorosa, o anfitrião nem ouvia Petit a dizer-lhe – “Se eu fosse a si, deitava-me já. Não se esqueça que tem de se levantar o mais tardar às cinco e meia, um quarto para as seis…”“Vá você andando, Petit, que eu ainda vou ficar mais um bocado...” Santos Manuel via-se a si mesmo a aproximar-se da Herdade da Silveira, a saltar a rede, e a deparar com um bicho moribundo. Via-se a si mesmo a atirar-se para a terra, e a encarar o bicho, a atirar-lhe ao pescoço, e ao primeiro impacto, o bicho a estender-se no solo pelado e a entregar a alma ao chão. Mas também poderia não ser assim. Porque estava a agoniar-se estupidamente?
Pensando com objectividade, nem havia motivos para tal receio. Pelos dados de que dispunha, tinha todas as razões para imaginar um bicho com todos os instintos ainda intactos. Aliás, a acção havia sido planeada nesse pressuposto, e por isso, melhor
fora pensar que na manhã seguinte estaria à altura de se honrar a si mesmo e ao bicho. Melhor fora pensar na localização do bebedouro, pois era verdade que os animais acordavam e dirigiam-se para a água, e ao caçador competia colocar-se nessa perspectiva. Para tanto também tinha de imaginar a direcção da brisa, que a continuar assim deveria ser de viração, e à cautela iria ter de caminhar contra o sentido do vento para que o cheiro de homem não atingisse o animal antes do momento de contacto, cumprindo as boas regras da caça. E estava a pensar nisso, com o bornal e os demais objectos ainda espalhados sobre a mesa, quando ouviu Fortaleza chamar.“Quer dizer que o doutor, numa noite destas, não se vai deitar?”Aí vinha ele outra vez - “Vou sim, estou só aqui à espera que a lua nasça”.“Já nasceu, doutor. Então não vê o campo todo iluminado?”“Esteja tranquilo, estou aqui e já estou indo para a cama... Mas fale baixo, homem, você agora tem a mania de gritar”.Fortaleza a insistir – “Sabe como é, convinha descansar numa noite destas...”“Está bem, está bem…”Caminhariam os três contra o vento, para que o bicho não se excitasse antes de tempo, e para se colocarem no lugar certo, sairiam pela madrugada. João Fortaleza poderia estar descansado, sobretudo se desaparecesse do vão da porta onde se encontrava especado. “Vá você andando, homem, vá, vá…” Nessa altura o anfitrião olhou para o céu e viu a Lua no alto, um grande minguante em forma de batata amolgada, viu-a a olhar para si, e achou graça. Achou graça por vários motivos. Primeiro porque não tinha dado pelo trajecto do astro, pois tinha subido até ao meio do céu e ele ali, espapaçado na espreguiçadeira, nem tinha dado por nada. Mas a segunda razão era bem mais interessante, pois fora aquela, precisamente, a Lua da sua primeira caçada, fora ela mesma, e agora a gaja, como se o tempo não tivesse passado, ali estava outra vez a olhá-lo. Caramba, como se lembrava. Não deveria lembrar-se, mas lembrava-se. Lá, dessa primeira vez, tinha passado a noite ao relento, a olhar para esse círculo comido dum lado, cor de batata crua, enquanto Fortaleza e Petit dormiam na tenda ao lado, e de vez em quando um deles acordava para lhe vir dizer que se deitasse.Mas nessa noite longínqua não fora necessário deitar-se. A madrugada havia surgido, e ele, completamente em forma, sentira-se como se tivesse acabado de nascer, ao saltar para a viatura. Fora então uma jornada memorável. Não deveria lembrar-se. Lembrava-se. Lembrava-se do cheiro cruzado dos fenos, da marcha solene dos carros, da paragem, da apeação, do embrenhamento no mato, e depois, do momento crucial da sua primeira experiência de contacto, quando havia enfrentado pela primeira vez o gatão extraordinário que lhe surgira na frente. Santos Manuel havia avançado em relação ao caçador profissional, e tendo deixado o grupo uns passos, tinha ficado a cem metros do fantasma que se apresentara primeiro de trás, depois de lado, depois de frente, e ele havia sentido o coração bater como se fosse um momento de núpcias e estivesse diante do colo da amada, diante do sexo duma amada outra que não fosse mulher, que não tivesse rosto nem cintura, só tivesse sexo, pulsante, indomável, que o chamasse para dentro da seu lugar de prazer absoluto, e em frente do qual fosse necessário envolver a vida, e não fosse necessário sobreviver, fosse até desprezível sobreviver. E então, com a carabina apontada face a essa fonte de prazer, esse corpo de confronto em relação ao qual ele não sabia onde começava o que era seu e até onde vinha ter o que era de outrem, havia disparado sobre o fantasma fulvo que lhe aparecera em frente do seu caminho, como se fora sobre si mesmo, levantara os braços à altura das sobrancelhas, unira as pernas e sentira-se completamente molhado. Quando se havia voltado, tinha atrás de si os carregadores, o pisteiro, o caçador profissional, e lá muito atrás, os seus dois amigos, Fortaleza e Orlando Petit de carabinas levantadas. O que tinha acontecido ele não saberia dizer. O vício começara aí. E agora lá estava ela outra vez, a Lua, amolgada dum lado, a entrar-lhe pelos olhos, a fechar-lhe os olhos, a dizer-lhe amanhã é já hoje, já aqui não estou eu, já desapareci do céu, não adormeças nunca, que já vai amanhecer. Santos Manuel obedeceu, ergueu-se da espreguiçadeira, pegou na arma, fez mira na direcção da lagoa, correu em volta sobre a linha escura das oliveiras, sentiu o olho e e o dedo implacáveis, a mão direita grossa, o pulso direito grosso, cobertos de sardas, prontos para tudo. Então era preciso avançar para o duche, pois o céu, no quadrante nordeste, não tardaria a mostrar uma mancha clara. E os seus amigos, dentro de casa, já faziam os barulhos do costume. Equipavam-se ruidosamente como era seu hábito.
“Vamos?” – perguntou Petit.“Vamos. Levo comigo três carregadores cheios, vinte e quatro balas”.“Dê-me cá um” – pediu Petit. “É só para sentir o metal.Encontravam-se entre a sala de bilhar e a cozinha a comerem directamente do que havia no frigorífico. De resto estava tudo preparado, cada um sabia que arma e que bornal carregar, cada um sabia que tarefa desempenhar e missão cumprir. Cada um ocupou o seu o lugar no jipe, cada um ficou entregue aos seus pensamentos. Se falassem, seria para dizerem que não poderiam falar. Caminhavam para Nascente, precisamente para o lado de onde a manhã haveria de clarear. Tinham bastante que correr. Durante o percurso, encontraram um café já aberto à beira da estrada e até sentiram conforto pelo facto de estarem aviados quanto a comida, o bornal de cada um bem reforçado. Assim não precisavam de parar. Orlando Petit ainda disse – “Por mim parávamos para um café”. Mas Fortaleza não estava de acordo, e nem abrandou. Percebia-se que continuava desconfiado em relação aos preparos.“E você Santos Manuel, o que acha?”“Por mim, também acho que chegar cedo é melhor do que chegar tarde...”“Vamos então indo. Temos café no bornal”.E aí tinham abandonado a estrada principal e haviam-se metido pelas carreteiras de terra batida, lisas, direitas, a perder de vista, com a manhã já a desenhar um traço cor de malva por cima da planura. Na semana anterior, Fortaleza havia ensaiado o caminho, um belo caminho como se fosse um mato aberto de lá, e por isso agora avançavam seguros, passando por entre duas filas de arame farpado, com o sentido colocado naquilo que os iria esperar dali a uns quilómetros mais. Mas de súbito, perceberam que não estavam sós na planura. Como se saído da própria luminosidade fosca da madrugada, um carro de caixa aberta vinha em sentido contrário, avançando pela mesma carreteira de terra batida, e à medida que se aproximava revelava o tipo de carga que transportava. De facto o material que trazia em cima era absolutamente espúrio. Em cima do carro aberto, vinham cabeças de mulher que se agitavam e levantavam os braços, à medida que o encontro se tornava inevitável.“Que vida a nossa. Querem ver que é um bando de pegas? Era só o que faltava...” - disse Fortaleza, começando a abrandar a marcha.De facto, o carro aberto avançava a meio da carreteira sem dar passagem, e agora ambos os carros paravam a meio, mesmo em frente, um e outro entalados entre as bardas de arame. Se as gajas estavam próximas duma carreteira larga, porque tinham avançado? Santos Manuel impacientou-se – “Passe por cima, passe por cima...” “Isso é uma boa forma de dizer, não é?De facto as mulheres, todas elas aparentando estarem ainda na casa dos vinte anos, exuberantes, com grandes trunfas de cabelo ripado, agitavam-se na caixa aberta, cheias de alegria e adereços extravagantes. Gingavam as sete ou oito que estavam na caixa e gingavam as três que vinham sentadas na cabine. O perigo de ficarem ali encalhados era iminente, pois nunca se sabia quando aquele pessoal poderia vir bêbado, nem se vislumbrava como poderia o todo-o-terreno dar a volta por perto. Como iriam fazer uma marcha-atrás até ao fim da carreteira? Foi Petit quem teve a ideia. Saltou fora do jipe e disse – “Miúdas, sabem onde vamos?”“Caçar!” – disseram várias.“Mas não sabem o quê, pois não?”“Não!”“Vamos caçar um leão”.As raparigas pareciam possessas de alegria. Riam desalmadamente, contorcendo-se em cima da caixa. Algumas delas não eram portuguesas, mas só se reconhecia pela fala, de tal modo vinham pintadas e despenteadas, cheias de fitas e pulseiras. “Onde vais tu caçar um leão?”“Afastem-se para o lado, ou recuem até lá adiante, e sigam-nos se quiserem ver o que se vai passar. Um leão verdadeiro...”“Tu a caçares um leão? Aqui nesta terra?”E as moças riam sem parar. Mas a condutora, que parecia estar praticamente nua dentro da cabine daquela carripana, só coberta pelos cabelos, como uma sereia, gritou – “Não convides, não. Olha que vamos mesmo ver essa tua cena! Queres ver como vamos? ” E já tinha começado a recuar, enquanto o jipe de Fortaleza avançava em frente, focinho de viatura contra focinho de viatura, até ao fundo do caminho. Duas manobras perfeitas, se não fosse a poeira.Quando os carros se cruzaram, uma delas, sem dúvida brasileira, gritou para dentro do jipe – “Vai jogar a última partida do Império Português, seu moço? Vamos ver como você joga isso ...”“Olha que ela aqui é formada em ciência histórica, pequeno. Ela sabe do que fala...”E aquele molho de mulheres preparava-se para dar meia volta e seguir o jipe, no meio da galhofa geral, quando Petit alcançou a espingarda e ordenou – “Para trás! Suas pegas desgraçadas! Voltar para trás, já, já!” E como Fortaleza tivesse descido do jipe e apontasse também na direcção das suas trunfas desfeitas, o carro de caixa aberta pôr-se em andamento pela carreteira adiante, tombando aqui e acolá, levando consigo as raparigas que se desequilibravam e gritavam como possessas. Algumas delas não conseguiam desviar os olhos dos canos das armas que lhes eram apontadas e levantavam os braços em gesto de rendição. Quando o carro com as mulheres ficou pequeno, um insignificante brinquedo a caminho do horizonte, Santos Manuel não conseguiu deixar de dizer – “Mau encontro, num dia como o de hoje. Vamos em frente”.“Não quer dizer nada, doutor, nem sequer estamos atrasados. A esta hora ainda o bicho dorme na palha” – disse Petit.“Isso diz você. Mulher metida em assuntos de caça traz sempre tragédia, mesmo quando é caçadora. Se uma pessoa lê o Hemingway percebe logo isso mesmo”. “Safa! Se eu voltasse a ler livros, esses não leria eu por certo” – disse Fortaleza, e mudando de tom, acrescentou – “Será que deram mesmo as aves ao bicho? Você não pode confirmar, pois não, Petit? Vão ver que ainda nós vamos pagar uma refeição que não existiu. Era tudo isso que eu queria confirmar, mas logo apareceu aquele bando de garças”.“Vamos em frente” – repetiu o anfitrião. Agora já caminhavam em terrenos da Herdade da Silveira, já se via a demarcação da propriedade, ainda que só a partir de um bom par de quilómetros se avistasse o vulto da moradia ainda mergulhada na planura amarelo escuro, sobressaindo do que deveria ser um súbito molho de árvores. A partir daí, na direcção nascente, é que se estendia o vasto domínio da propriedade ocupada com a criação, e nele circunscritos, uns dez hectares de terra lisa, bardados por duas fieiras de arame, haviam sido reservadas ao animal, por uma noite e um dia. Dentro desse recinto largo, a um canto, separados por um murete e uma outra sebe de arame, também por uma noite e um dia, estavam guardadas as avestruzes. Seria na descida suave que o terreno apresentava a sudeste que deveria encontrar-se a celha com água. A leve aragem da manhã que acabava de romper soprava exactamente desse lado, tal como esperado. Fortaleza tinha estacionado o jipe para verificar de longe se tudo estava conforme, desconfiado, como se até os declives e a brisa pudessem ser vigarizados pela administração da herdade. Petit e Fortaleza ainda trocavam palavras entre si, Fortaleza carregando duas armas, a sua ao ombro, a Winchester Magnum ao colo. Santos Manuel não dizia nada. O anfitrião tinha saído para fora, tal como os seus companheiros, todo vestido de verde lodo, o chapéu debruado a couro bem enterrado na cabeça, e só olhava em volta, olhava, olhava. Sim, não se importava de gastar naquele encontro oitocentos contos bem contados, mas pensando bem, que diferença fazia de tudo aquilo que haviam deixado lá. E ou fosse por essa comparação decepcionante, ou por se lembrar ainda do encontro com as mulheres da caixa aberta, sentia um frio entrar-lhe pelo coração dentro. Pois o que lhes tinham dito aquelas gajas da vida? Nada de importante, e no entanto continuava a sentir-se perseguido por aquilo que sentia ser a malvadez do seu riso. Estava a pensar nisso, e a mexer nos bolsos onde guardava o carregador suplente, quando um rapaz numa motorizada parou para dizer - “Já ele se levantou. Querem ver?” E entregou uma espécie de binóculos a Fortaleza, que se pôs de imediato a lobrigar ao longe. “Se é o que eu estou a ver, estamos a ficar atrasados”.“Posso ir ver a caçada?”“Não podes, não” – disse Petit. “Dar caça ao leão não é o mesmo que mugir uma vaca. Acho mesmo que deves parar de andar com essa coisa ruidosa aqui por estes lados. Se for preciso pagar para daqui em diante estares quieto, e não deixares ninguém se aproximar, até pagamos. Compreendes? O que está combinado é que toda esta zona a partir dali se encontra isolada desde que o bicho chegou. E estará enquanto o bicho, vivo ou morto, aqui ficar”.E os três homens, abandonando o todo-o-terreno, e carregados com os seus kits de caça, começaram a andar na direcção da zona bardada, a andar em silêncio, na manhã que subia. Santos Manuel ia à frente, não era o que estava combinado, mas ia, de cabeça baixa, a cortar a brisa, a atenção completamente concentrada no que se passava entre os seus pés e o que esperava encontrar. Como estaria o que iria encontrar? Como estaria? À aproximação daquela zona, sentia o coração pular desordenadamente, por estupidez, por desmazelo em não ordenar os pensamentos. E então aproximaram-se os três, ao mesmo tempo, e viram a celha e apertaram as mãos. Apertaram as mãos, porque lá estava, à luz do dia, a forma cabeçuda do fantasma a deslocar-se no pasto. Os três emudeceram. Petit disse muito baixo– “Apetecia-me fazer uma coisa que não faço há muitos anos, apetecia-me benzer-me”. E benzeu-se.“Oh! Oh! Lá vêm mas é oitocentos contos a mover-se na direcção da celha. Se eu pudesse ter adivinhado, não me tinha metido nisto nem tinha mostrado ao doutor a notícia do desportivo…” – disse Fortaleza.Mas o anfitrião nem os ouvia. Naquele momento, encontrava-se muito longe, lá , entre as folhas do Atlas Planeta Agostini, uns 23 graus na Latitude Sul, embora continuasse com um olho na arma que Fortaleza levava ao colo, e o outro no bicho que se movia lentamente na direcção da celha, arrastando uma das patas de trás, com a cabeçorra toda virada de lado, dando a impressão de que não era um mamífero mas um peixe quando perde a noção do equilíbrio, e antes de morrer, começa a nadar de barriga para cima. Pois o felino caminhava todo torcido, caminhava com dificuldade, dando umas passadas trôpegas e parando, como se fosse a cada momento deitar-se de novo no chão pelado. A meio do corpo, a pele da barriga pendia como um trapo suspenso, e agora, que o animal insistia em avançar na direcção da água, a cauda, vista de lado, assumia a forma de um farrapo teso e pardo, incapaz de qualquer movimento. Fosse como fosse, não era ali que Santos Manuel se encontrava, era lá, muito longe, num espaço muito vasto, e era de lá que lhe vinha a solução, a última, a péssima, aquela que na noite anterior tinha imaginado em desespero de causa. Então, como o animal traçasse a sua caminhada ziguezagueante na direcção da celha, indiferente ao que quer que fosse, e nem farejasse na direcção dos seres humanos que eles eram, os três caçadores, que avançavam paralelamente pelo lado exterior da rede, caminharam mais depressa, de modo a assistirem à dessentação do bicho. De facto ao chegar junto da celha, que afinal sempre era quadrada, o animal nem se virou, mergulhou imediatamente o focinho na água, e como um velho gato que não se refresca há muito, bebeu longamente. Santos Manuel pensou – “Agora vai virar-se...” E o bicho virou-se e mostrou à claridade da manhã a face amarrotada. Os cabelos longos do cativeiro pareciam fiapos que tivessem sido chamuscados. Nem a pose era altiva, porque olhava só de um lado, parecendo um peluche velho esfrangalhado pelas mãos dum gigante. Àquela hora da manhã, ainda nem eram nove horas, e já tinha a língua pendente, a língua vermelha, era a única coisa que luzia na paisagem, mas também essa desapareceu. “Não vai aguentar” – disse para si Santos Manuel. “Vai tombar de focinho diante dos caçadores, pois vai...” E de facto o bicho curvou-se e ficou a olhar, a olhar pachorrentamente, parecendo não ver nada, cobertos que estavam os olhos pelas pálpebras grossas, e depois, ali mesmo diante dos seres humanos, pareceu estar a ponto de dormitar. “Que desilusão, oitocentos contos espojados no chão…” – Ouvia Fortaleza dizer, um palmo acima da sua cabeça, ouvia mas não ligava. Até porque Petit, também ele decepcionado, tinha outra interpretação – “Temos de admitir que o bicho se amansou, durante quinze anos de exposição. Não é verdade? Dez milhões de pessoas olharem para ele…” Enquanto o anfitrião pensava - “Isto é, eu vou entrar dentro do campo bardado, vou avançar na direcção do animal tanto quanto puder, e aí, a poucos metros, abato-o. Abato-o como fez o acompanhante da filha de Franco, ajoelhando-me diante do adversário, abatendo o adversário frente a frente, falando com ele de igual para igual…” E retirando a Winchester das mãos de Fortaleza, que continuava a transportá-la ao colo como se fosse uma criança, Santos Manuel avançou.“Pois onde vai?”- tartamudeou Fortaleza, com a sua própria arma em guarda. “Não me diga que vai entrar para dentro da rede, não me diga...” Digo e faço, pensava o anfitrião. Digo e faço.E Santos Manuel pôs-se a avançar ao longo da rede de modo a alcançar a portada que dava acesso ao campo bardado, abriu a portada, encostou-a e entrou para dentro do vasto recinto, começando a sentir como se não fosse seu o seu próprio vulto verde, começando a deslocar-se na direcção da zona da celha onde o animal se encontrava, estendido ao sol. A deslocar-se. Ainda estava a uma distância de uns cento e vinte metros, cento e dez, mas não poderia atirar a menos de uns cinquenta. No estado em que o bicho se encontrava, só a partir de cinquenta ou mesmo quarenta, ocorreria um enfrentamento leal, e então começou a avançar passo a passo, seguido pelos seus dois companheiros, que faziam o mesmo percurso, mas do lado de fora da rede. O anfitrião avançava. Todo o seu olhar estava posto na silhueta decrépita do animal do zoo, e mesmo assim dava para perceber que a sua atitude estava iluminando a vida dos seus companheiros que caminhavam ao lado, para além da malha de arame. Mas o importante era concentrar-se e avançar ainda mais, avançar tanto quanto fosse possível, até porque naquele instante o bicho tinha virado a cabeça e contemplava o avanço do caçador, sem reagir. Era isso, o anfitrião podia mesmo flectir os joelhos, e a partir deles atirar à altura da cabeça do bicho, podia até mesmo ajoelhar-se no chão, tal como o acompanhante de Dona Mercedes Franco, naqueles saudosos dias passados lá. Porém, tal não chegou a acontecer. Pois de súbito, o animal esquadrilhado levantou-se, endireitou as patas, endireitou a cabeçorra despenteada, os cabelos da longa juba abanaram dum lado a outro, como uma saia de farrapos, e o bicho começou a avançar na direcção do anfitrião. E Santos Manuel que fora um caçador experimentado, reagiu de imediato, apontou na direcção dos ombros do animal, e o tiro passou muito acima do alvo. E ele pensou – “Meu Deus, falhei, mas não falho mais…” E outro tiro, e outro partiram, sob a pressão das suas mãos esforçadas, e nada, era como se os tiros não partissem, as munições se tivessem transformado em bombas de Carnaval, sem impacte nem direcção, e o alvo activo, concreto, feito de ossos e pêlos, continuasse a avançar incólume a essa chuva de balas que dançava dum lado a outro para nada. Santos Manuel ouviu dizer do lado de fora da rede – Ah! E pensou que uma coisa terrível tivesse acontecido, pois mantinha a arma em riste e dela nada partia. Só que a coisa terrível seria duma outra natureza - O animal havia galopado em ziguezague, não em direcção à sua pessoa, mas de encontro ao fundo da rede contra a qual afocinhava, urrando para a planície. Fazendo vibrar a rede inteira como se lhe imprimisse uma descarga eléctrica, e não tardou que a zona da portada apenas unida cedesse, e o animal estropiado saísse para fora do arame emalhado.Então durante um tempo, que depois não saberia avaliar quanto, haviam ocorrido várias acções que ordenava da seguinte forma, ainda que não tivesse a certeza se teriam acontecido ou não por essa ordem – Fortaleza havia iniciado uma perseguição ao leão, brandindo no ar a sua própria arma sem munições, gritando atrás do animal, como se corresse atrás dum cão que lhe tivesse levado um chinelo, ou coisa que o valha, corria tropeçando e caindo, estatelando no chão o corpo volumoso, erguendo-se e perseguindo de novo o bicho do zoo, que por sua vez parecia ter asas nas patas, atravessando nas calmas o campo pelado, como se procurasse uma fuga que o levasse para lá, para o seu primitivo lugar e estivesse preso a esse azimute por um fio que o conduzia terreno adiante. O anfitrião bradava longe, de dentro da cerca, onde tinha ficado colado ao pasto - “Pare, homem, pare… Você está sem munições. Volte para trás…” Ao mesmo tempo que Petit, munido do telefone móvel, berrava a plenos pulmões que havia um leão à solta na Herdade da Silveira, pedindo que se encaminhassem de imediato para ali, para abaterem o animal que se tinha soltado sem ninguém perceber como. Petit falava aos gritos para o posto local da Guarda Nacional Republica, espalhando aos quatro ventos o segredo que estivera tão bem guardado. Petit a explicar em altas vozes que um dos seus companheiro naquele instante mesmo procurava controlar o bicho, com uma carabina sem balas. A voz de Petit a ouvir-se, feita altifalante, na paisagem iluminada. Na paisagem lisa, por onde Fortaleza já voltava, caminhando esguedelhado, sem arma, sem faca de mato à cintura, pálido como farinha, sufocado, e mesmo assim ainda a balbuciar – “Agora toda a gente vai ficar a saber, vai ser um pratinho dos diabos, vai ser um pratinho dos diabos. Vai ser, vai ser… É preciso dizer à Guarda que o tipo foi naquela direcção, além. E naquele direcção, pode haver gente a morar. Estamos debaixo de brasas…”E Fortaleza deitou-se no chão, com o chapéu sobre o peito, a arfar. Assoava-se por alguma coisa que lhe corria dos olhos – “Eu não lhe disse ontem à noite que devia dormir, doutor? Eu não lhe disse? Você não escutou…”“Fale baixo, homem, de facto você agora ganhou essa mania de gritar”.“Pois ganhou…”E Santos Manuel e Petit também eles se deitaram no chão, com os chapéus sobre o peito. Não eram capazes de se movimentar sabendo que o bicho andava à solta pela herdade fora, liberto pelas suas mãos, quando deveria estar abatido. Para além do risco que viviam, o momento tornava-se-lhes insuportável como se um tremor de terra tivesse derrocado os pavimentos interiores dos seus sítios mais amados. Três homens deitados no chão raso da Herdade da Silveira, imóveis, incapazes de falar. “Vão ver…” – disse Petit a certa altura, com o sol já a bater-lhes de chapa na cara. “Vão ver que os gajos abatem-no só com um tiro…” Falava a partir do chão. Santos Manuel sentara-se, sobressaltado. – Seria verdade? Seria que um simples agente da Guarda Nacional Republicana, que se calhar nunca havia abatido um coelho, iria dar fim ao Rei de Sofala só com um disparo? E esperou. Não poderia avaliar durante quanto tempo esperou, sentado, com o punho forte do braço direito pousado no joelho, o punho cheio de sardas, que havia falhado. À espera. Até que os três homens ouviram, bastante perto, como se o animal afinal não tivesse andado para longe, um tiro, dois, três, sete, dez, e o décimo primeiro ao mesmo tempo de um décimo segundo, talvez. Teriam contado bem? Tinham, sim. Fortaleza atirara fora o chapéu e também se sentara. Assoava-se para o chão.“Doze, doutor, foram precisos doze…” “Parece que foram…” – disse Petit. Estavam sentados no meio dos objectos de caça, espalhados em redor como num campo de batalha. Caramba, doze tiros. Convinha não esquecer que os bornais tinham vindo bem fornecidos. O anfitrião, afogueado pelo calor do sol que subia sem parar, pegou no seu bornal e procurou o frasco do uísque bem como os frascos do gelo cujas tampas se transformavam em copos de campanha. Serviu os três copos, estendeu-os, e antes de abalarem ao encontro dos guardas e do animal abatido, a que tinham de dar um destino, muito antes de voltarem para o pátio da casa onde os esperava o aceno da lagoa, a sombra das telhas, o tabuleiro preparado, a mesa, o livro, o regaço onde ele pousava, o silêncio de quem o lia quando os três falavam, antes, muito antes desse regresso, era preciso beber um belo gole pelo velho bicho que afinal se tinha batido denodadamente, em campo aberto, diante de dois grupos armados. Não fora para salvar o animal da desonra que os três se tinham metido naquela empresa? Naquelas circunstâncias, quem fora o autor material dos disparos não tinha importância, era apenas um sujeito na cadeia da decência. Disse Santos Manuel, ainda que soubesse, os três soubessem claramente, que tudo havia acontecido por alguma coisa mais – Um desejo, um desejo sem preço… Mas sobre esse outro lado daquele encontro, enroscado no fundo do coração, ninguém podia falar em voz alta.O anfitrião disse – “Vamos a isto…” E acrescentou – “Uma vergonha. Éramos quatro, da mesma idade. Mas só um de nós se portou bem. E foi ele…” “A ele, ao bicho...”Disse Santos Manuel, com os olhos fechados na pele rubra. Petit também estava desfigurado, mas procurava recompor-se arrumando a alça da arma sobre o colete. Procurava saltar por cima de alguma coisa que ficava muito acima da altura real das suas cabeças - “Olhe, doutor, se isto se souber e for publicado, nós ralados, compreende? Quem se rir de nós é porque nunca esteve lá… Olhe, doutor , deixar os outros rirem de nós também é um acto de caça. Vamos embora…”Tinham levado aos lábios os copos de metal gelado. Tinham-nos guardado. Agora avançavam na direcção de onde havia soprado o som das armas, descendo apressados pelo campo, contornando a rede das avestruzes. Eram onze horas em ponto. Cigarras cantavam como loucas. A jornada ainda não tinha terminado.


Lídia Jorge

In O Belo Adormecido, 2004, Publicações Dom Quixote





Corre corre cabacinha corre.

Era uma vez uma velhinha que vivia só, na sua casinha da aldeia.
Certo dia, recebeu uma carta da sua neta, que vivia numa terra distante. A carta trazia-lhe uma grande alegria – a neta ia casar-se e convidava a avozinha para assistir ao seu casamento.
Tão contente ficou que imediatamente se pôs a caminho para não chegar atrasada.
Depois de ter andado alguns quilómetros, surgiu à sua frente um grande lobo que lhe disse numa voz rouca:
Ai, velhinha, que eu como-te!
Ai, não me comas, que eu estou muito magrinha. Vou ao casamento da minha neta e, quando de lá voltar, já venho mais gordinha!
Está bem na volta cá te espero! - respondeu o lobo e deixou-a seguir caminho.
Lá mais adiante, surgiu-lhe na frente um urso, que, pousando-lhe as patas nos ombros, lhe disse ao ouvido:
Ai, velhinha, que eu como-te!
Ai, não me comas, que eu estou muito magrinha. Vou ao casamento da minha neta e, quando de lá voltar, já venho mais gordinha!
Tal como o lobo, o urso achou que a velhinha tinha razão e deixou-a seguir viagem, dizendo:
Está bem na volta cá te espero!
Já quase no fim da viagem, uma terceira fera apareceu à velhinha – era um leão.
Ai, velhinha, que eu como-te!
Ai, não me comas, que eu estou muito magrinha. Vou ao casamento da minha neta e, quando de lá voltar, já venho mais gordinha!
O leão também acho que era melhor esperar que ela voltasse mais gordinha. Então disse-lhe:
Está bem na volta cá te espero!
Muito assustada a velhinha continuou o seu caminho até que chegou, por fim a casa da neta. Contou tudo o que lhe acontecera e a neta aclamou-a dizendo que não haveria problema nenhum.
O casamento foi muito bonito e a velhinha estava muito feliz.
Mas, quando se decidiu a voltar para a sua casa, começou a ficar com muito medo. A neta correu ao quintal, cortou a cabacinha maior e mais redondinha que lá tinha abriu-lhe uma pequena porta e a velhinha entrou nela. A neta voltou a fechar a cabacinha.
Então a viagem começou quando a cabacinha e a velhinha rebolavam estrada fora .
A certa altura passaram ao pé do leão, que perguntou:
- Oh cabacinha não viste para aí uma velhinha?
A velhinha de dentro da cabacinha respondeu:
Não vi velhinha, nem velhão
Corre corre cabacinha
Corre corre cabação!!!
O leão fez cara de admirado!
A cabacinha continuou rebolando pela estrada for a.
Um pouco mais à frente estava o urso, esperando. Este resolveu perguntar:
Oh cabacinha não viste para aí uma velhinha?
De dentro da cabacinha, a mesma voz respondeu:
Não vi velhinha, nem velhão
Corre corre cabacinha
Corre corre cabação!!!
A cabacinha continuou rebolando, rebolando, sempre a toda a pressa.
O urso não percebeu nada do que via e ouvia…
Mais perto de casa estava o lobo esfomeado. Ao ver a cabacinha perguntou-lhe:
Oh cabacinha não viste para aí uma velhinha?
De dentro da cabacinha a voz da velhinha fez-se ouvir:
Não vi velhinha, nem velhão
Corre corre cabacinha
Corre corre cabação!!!
O lobo pulou de raiva.
Finalmente a nossa velhinha chegou a casa. Não havia mais perigos.
Pela estrada for a tinham ficado, enganados, os seus três inimigos.
A cabacinha salvara-lhe a vida.
Avó Miana

A Senhora do Retrato

Os retratos a óleo fascinam-me. E ao mesmo tempo assustam-me. Sempre tive medo que as pessoas saíssem das molduras e começassem a passear pela casa. Para falar verdade, estou convencido que isso aconteceu algumas vezes. Em certas noites, quando eu era pequeno, ouvia passos abafados e tinha a sensação de que a casa ficava subitamente cheia de presenças. Ainda hoje não gosto de atravessar os longos corredores das velhas casas com grandes retratos pendurados nas paredes. Há olhos que nos seguem do alto e nunca se sabe o que de repente pode acontecer.
Havia na casa da tia Hermengarda um quadro deslumbrante. Ficava ao cimo das escadas, à entrada do corredor que dava para os quartos de dormir. Mesmo assim, rodeado de sombras, irradiava uma luz que só podia vir de dentro da dama do retrato. Não sei se da blusa muito branca, se dos olhos, às vezes verdes, às vezes cinzentos. Não sei se do sorriso, às vezes alegre, às vezes triste. Eu parava muitas vezes em frente do retrato. Era talvez o único que não me assustava. Creio até que dele se desprendia uma luz benfazeja, que de certo modo me protegia.
Mas havia um mistério. Ninguém me dizia quem era a senhora do retrato. Arminda, a criada velha, benzia-se quando passava diante do quadro. Às vezes fazia
figas e estranhos sinais de esconjuração. A prima Luísa passava sem olhar.
- Essa pergunta não se faz - disse-me um dia em que lhe perguntei quem era aquela senhora.
Percebi que não gostava dela e que era um assunto proibido. Até a minha mãe me ralhou e me pediu para nunca mais fazer tal pergunta. Mas eu não resistia. Por vezes
descaía-me e dava comigo a perguntar quem era a senhora dos olhos verdes, quase cinzentos, que me sorria de dentro do retrato.
Com a minha tia-avó, eu tinha uma relação especial. Ela lia-me histórias e poemas inquietantes. Creio que troçava das convenções, talvez das próprias pessoas. Por vezes era difícil saber quando estava a sério ou a brincar. Apesar de já ser muito velha, tinha um sentido agudo do
ridículo. Foi a primeira pessoa verdadeiramente subversiva que conheci. Era óbvio que tinha um fraco por mim. Pelo menos era o único membro da família a quem ela tratava como um igual. Dormia no andar de baixo e nunca subia as escadas. Talvez por isso eu nunca lhe tinha perguntado quem era a senhora do retrato.
Um dia, farto já de tanto mistério e ralhete e, sobretudo, das gaifonas da Arminda e do ar empertigado da prima Luísa, não me contive e perguntei-lhe. A minha tia sorriu. Depois levantou-se, pegou no molho de chaves que trazia preso à cintura, abriu uma gaveta da escrevaninha e tirou um álbum muito antigo. Voltou a sentar-se e lentamente começou a mostrar-me as fotografias. Eram quase todas da senhora do retrato e do meu primo Bernardo, que há muito tinha partido para a África do Sul.
Apareciam juntos a cavalo e de bicicleta. E também de fato de banho, na praia da Costa Nova. Havia alguns em que o meu primo estava de smoking e ela de vestido de noite. Via-se também a tia Hermengarda, mais nova, por vezes os meus pais, gente que eu não conhecia. Até que chegámos à senhora do retrato já de branco vestida.
- Natacha - murmurou a minha tia, com uma
névoa nos olhos.
E depois de um silêncio:
- Ela chama-se Natália, mas eu gosto mais de Natacha, sempre a tratei assim. É preciso dizer que a tia Hermengarda tinha vivido em Moscovo no início da carreira diplomática do marido e era uma apaixonada dos autores russos, Pushkine, Dostoievski, principalmente Tolstoi, que visitou algumas vezes em Isnaia Poliana. Identificava-se com as personagens de Guerra e Paz. Creio que amava secretamente o príncipe André e gostava de ter sido Natacha. Falava muito da alma russa. Era uma propensão do seu espírito.
- Tu também tens alma russa - dizia-me. E era como se me tivesse armado cavaleiro.


Manuel Alegre, O Homem do País Azul, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989.