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Bailado Infantil

sábado, 16 de maio de 2009

Biografia breve de Louis Braille

Louis Braille nasceu na pequena aldeia francesa de Coupvray, no distrito de Seine-et-Marne, a cerca de 45 km. de Paris, no dia 4 de Janeiro de 1809. O pai, homem de certo prestígio na região, era seleiro ou correeiro. Aos três anos, quando brincava na oficina de trabalho do pai, ao tentar perfurar um pedaço de couro com uma sovela, aproxi- mou-a do rosto, acabando por ferir o olho esquerdo. A infecção produzida pelo acidente expandiu-se e atingiu o outro olho. O menino ficou completamente cego.
Contando com o amor e fiel apoio dos pais, Louis acostumou-se logo à nova situação. Com o auxílio de uma bengalinha, ia à escola, onde demonstrou em pouco tempo inteligência superior aos meninos da sua idade, pois decorava e recitava as lições que ouvia, espantando os professores com a sua inteligência brilhante.
Aos sete anos consegue ingressar na instituição de Valentin Haüy, um homem culto e de nobre coração, que, em 1784, fundara em Paris uma escola para instruir os cegos e prepará-los para a vida. Haüy, apologista das filosofias sensistas - defensoras de que tudo depende dos sentidos -, adapta o alfabeto vulgar, traçado em relevo, a fim de que as letras fossem perceptíveis pelos dedos dos destinatários.
Também, por essa época, Charles Barbier de la Serre, um capitão de artilharia, aperfeiçoava um código através de pontos, que podia ler-se com os dedos e que era usado para velar os segredos das mensagens militares e diplomáticas, a que chamou "escrita nocturna" ou "sonografia".
Um encontro com Teresa von Paradise, concertista cega, foi decisivo na sua vida. Teresa idealizara um engenhoso aparelho para ler e compor ao piano, que fascinou Braille. Aprendendo música com ela, tornou-se rapidamente organista e violoncelista. Aos quinze anos foi admitido como organista da Igreja de Santa Ana, em Paris.
Nessa altura seus pais já tinham morrido, assim como o seu grande amigo Haüy, director do Instituto que se transformara no seu lar. Como dedicasse grande parte do seu tempo à educação dos novos alunos, aceitaram-no como professor do Instituto.
Rapaz educado e agradável, era recebido nos melhores salões da época. E foi num desses salões que Braille conheceu Alphonse Thibaud, então conselheiro comercial do governo francês. No meio de uma conversa Thibaud perguntou-lhe porque não tentava criar um método que possibilitasse aos cegos não apenas ler, mas também escrever.
A princípio, Braille irritou-se com a sugestão, pois achava que a tarefa devia caber aos que viam e não a ele. Reconsiderando, começou a admitir a possibilidade de realizá-la, mesmo sendo cego.
Foi então que começou a trabalhar no código de Barbier. Após três anos, o jovem estudioso conseguiu o que queria: o sistema dos pontos em relevo representando letras. A ponta de uma sovela, o mesmo instrumento que lhe tirara a visão, passara a ser o seu instrumento de trabalho.
Geralmente, aponta-se 1825 como o momento em que o jovem aluno inventa o sistema (que mais tarde veio a ter o seu nome).
Todavia, apenas em 1829 publica a primeira edição do trabalho, intitulado "Processo para escrever as palavras, a música e o canto-chão, por meio de pontos, para uso dos cegos e dispostos para eles". Deu-lhe forma definitiva na segunda edição, vinda a lume em 1837.
Este sistema é constituído por seis pontos, em duas filas verticais de três, num total de 63 sinais.
Este processo de leitura e escrita através de pontos em relevo é usado, actualmente, em todo o mundo. Trata-se de um modelo de lógica, de simplicidade e de polivalência, que se adapta a todas as necessidades dos utilizadores, quer nas línguas e em toda a espécie de grafias, quer na música, matemática, física, etc.
Uma desilusão o aguardava: dificilmente o seu sistema seria aceite. O capital empregado pelas escolas nos enormes livros para cegos não permitia que lhes fossem deixados de lado de uma hora para a outra. Braille, então com vinte anos, começou a ser procurado pelos alunos do Instituto que lhe pediam lições do novo sistema. Estas aulas tinham que ser realizadas às escondidas, mas serviriam - pensava ele - para difundir o método e provar a sua funcionalidade. Braille tentava, ao mesmo tempo, exibir o sistema nos lugares que frequentava. O máximo que conseguiu foi um ofício, no qual o governo francês agradecia a sua contribuição à Ciência.
De entre os alunos a quem ensinava música havia uma pequena cega, Teresa von Kleinert. O seu talento ao piano era extraordinário, o que animou Braille a ensinar-lhe o seu sistema de pontinhos. Em pouco tempo, Teresa tornou-se concertista de sucesso. Recebida com agrado nos salões da Europa, Teresa difundia, a cada apresentação, o sistema Braille e pela primeira vez os jornais falavam no seu nome, até então desconhecido. A 6 de Janeiro de 1852 Braille morreu, sem chegar a ver reconhecido o seu trabalho. Só dois anos após a sua morte o sistema foi reconhecido oficialmente na França, depois que Teresa se exibiu na Exposição Internacional de Paris. Ao piano, pôde mostrar ao mundo como é que um cego podia aprender a ler e a escrever. Isso tudo, graças a um sistema criado por outro cego.

Aprendendo com paixão

Escrito em português do Brasil.

BRAILLE
Flávio Couto e silva de Oliveira
Dedicado à memória do Professor Valter Alves, do Instituto São Rafael, Belo Horizonte M. G. - Brasil

O traçado da letra cursiva ia se esmaecendo a cada dia, enquanto os olhos apertados tentavam a todo custo distinguir o contraste da escrita no caderno. Óculos muito grossos, nariz colado ao livro e a voz abafada pela proximidade do papel era uma situação comum durante as leituras em voz alta. Sentar na primeira fileira e levantar do lugar a todo tempo para olhar de perto o texto da lousa era também parte da rotina na sala de aula, com a qual eu já me habituara. Um outro hábito que acabou se desenvolvendo, ora mais, ora menos incentivado pelos professores, foi o de sentar em dupla com um colega, para que ele ditasse a matéria ou prestasse algum auxílio extra. Isso era também muito bom, por permitir conversinhas corriqueiras, quase sempre interrompidas pelas admoestações dos mestres, que se impacientavam com o burburinho e com a ocasional falta de atenção dos alunos.
Durante o recreio, ia ficando mais e mais difícil participar das brincadeiras com bola, do futebol e de outros jogos. Ao mesmo tempo, era importante ir adquirindo o necessário fair play para conviver com as brincadeiras, apelidos e implicâncias dos colegas, algumas vezes inocentes, outras vezes temperada com a pseudo-crueldade das crianças e a dos adolescentes. Cegueta, caolho, quatro olhos eram os nomes mais comuns. Tapinhas na nuca, cutucões e dedos nas lentes dos óculos, todos sem autoria definida, eram práticas infringidas contra o meu sossego, mas com as quais eu já me habituara, ora levando na esportiva, ora partindo para a violência física. Nesse último caso, normalmente levava a pior, mas saía gratificado pelo meu sentido de justiça e pela sensação de não me ter deixado humilhar. As adversidades do cotidiano não me incomodavam tanto. Eu possuía uma auto estima equilibrada, reforçada pela educação que recebia de meus pais, que sempre me encorajaram a ser confiante e independente. Só vim a sentir pela primeira vez o gosto amargo do preconceito, quando soube que uma garota me recusara, explicitamente em razão de minha deficiência visual, que eu sabia estar se agravando. A dificuldade para ler agora era tremenda. Nem as grossas lentes me garantiam mais o tênue contorno das letras, que desapareceram quase por completo, dos livros, do caderno, da lousa. Havia, pois, chegado o momento que eu tanto quisera adiar, o de começar a aprender o Braille. Nesse caso, o preconceito era todinho meu. Julgava que o Braille fosse coisa de cego e que, portanto, definitivamente, não era para mim. Mas, no íntimo, sempre soube que, como portador de glaucoma congênito, mais cedo ou mais tarde eu perderia a minha preciosa visão, que mesmo não sendo lá essas coisas, continuava a ser, para mim, tão preciosa. Fonte de equilíbrio físico – e porque não dizer também mental – minha visão me permitia enxergar o azul do céu, o branco das nuvens, o contorno das árvores e das montanhas. Distinguia as cores e o formato dos objetos, mas nunca dispensava o tato, a audição e o olfato, para me auxiliar no reconhecimento de seus detalhes. Já com os meus quinze anos de idade, não mais saía às ruas desacompanhado, como antes. Assim, além do Braille, havia chegado a hora de aprender também locomoção e mobilidade, em miúdos, aprender a usar a temida bengala branca, símbolo máximo da cegueira, o qual eu não fazia nenhuma questão de ostentar, recusando-me terminantemente a freqüentar o instituto dos cegos .
Ocorre que, por essa ocasião, eu manifestara um grande interesse pela música. Como muitos adolescentes dotados de sensibilidade artística, queria de toda maneira aprender a tocar violão e a cantar, inspirado pelos ídolos da MPB e do rock and roll. Arranjaram-me então um professor, o melhor da cidade, que me ensinaria a dedilhar as cordas do instrumento e a criar acordes encantadores. Nos dias que antecederam o da minha primeira aula, mal consegui dormir, tamanha era a minha expectativa e entusiasmo. Na hora marcada, sentado na sala de visitas da casa do professor, juntamente com meu pai, aguardava ansioso pelo término da aula de outro aluno e de onde estávamos, ouviam-se nitidamente límpidos arpejos e solos de violões que tocavam em dueto, aumentando assim o meu entusiasmo. Quando os acordes cessaram, irromperam na sala um senhor e um jovem, ambos de violão em punho. Ao ser apresentado a mim, o jovem me disse que eu era um garoto de sorte, por ter, a essas alturas do ano, conseguido uma vaga para estudar com um dos melhores professores de violão do país, e que eu não perdesse essa magnífica oportunidade. Despedindo-se de todos, o jovem saiu, fechando a porta atrás de si. Um frio percorreu então a minha espinha, ao me dar conta de que meu professor, aquele considerado um dos melhores do país, era um senhor de uns sessenta e poucos anos, completamente cego! Na verdade, o primeiro cego de carne e osso que eu conhecera.
No primeiro dia, conversamos muito, sobre o violão, mas também sobre outros temas: a deficiência visual, como é viver sem enxergar, uma de minhas maiores angústias à época; trocamos impressões com a liberdade de quem compartilha a mesma experiência do não ver. Um, homem maduro, absolutamente realizado, tranqüilo com a vida e com a sua deficiência e a sua profissão; o outro, adolescente, ainda mal tateando os seus caminhos , cheio de expectativas para o futuro, de ansiedades, medos e inseguranças. Éramos, assim, o mestre e o aprendiz, ou por outra, um guru e seu novo discípulo. Pois bem, esse professor, a música, a minha vontade de aprender, meus pais que espertamente armaram toda aquela situação, acabaram sendo os grandes responsáveis pela minha iniciação no universo tiflológico e, especificamente, no das soluções educacionais direcionadas ao atendimento das necessidades de estudantes com deficiência visual.
Fazendo-se passar por desavisado, meu velho professor perguntou-me inicialmente se eu teria condições visuais de ler partituras escritas no sistema comum, em tinta. Depois, de ouvir a minha resposta um tanto desapontada, sorrindo, colocou em minhas mãos um livro muito grosso todo marcado com pequenos furinhos formando linhas em alto relevo e me disse que ali estavam todos os exercícios e as músicas que eu deveria estudar no primeiro semestre de aulas. Era a primeira vez na vida que eu manuseava um livro escrito em Braille, embora eu já conhecesse vagamente o sistema, de tanto ouvir falar nele, principalmente durante o último ano. Sabia que era um sistema de leitura e escrita para cegos, criado por um francês chamado Louis Braille, em 1825, e que a leitura era feita com a ponta dos dedos. Fora isso, eu não sabia mais nada. Então, habilmente, o professor incitou a minha curiosidade sobre o assunto, dizendo-me que quando Louis Braille criou o seu sistema, ele tinha exatamente a minha idade, quinze anos, e que todas as letras e todos os símbolos, incluindo os da matemática e os da música, eram formados da combinação de apenas seis pontos e que esses pontos permitiam sessenta e três diferentes combinações. Quis saber como a escrita era produzida e ele me mostrou uma prancheta de madeira onde se acoplava uma espécie de régua metálica, que abrigava as matrizes dos pontos , chamada reglete. Mostrou-me em seguida um pequeno instrumento pontiagudo parecido com um prego envolto em um suporte anatômico feito de madeira ou de plástico, chamado punção, que servia para furar o papel, o qual deveria ficar preso entre as duas partes da reglete. Explicou-me que o papel deveria ser um pouco mais grosso do que o comum (gramatura 40 kilos, por exemplo) para que o relevo do Braille não se apagasse facilmente. Depois mostrou-me uma máquina de escrever com apenas seis teclas, uma para cada ponto do Braille, e uma barra de espaço para separar palavras. Era a máquina Perkins de datilografia em Braille. Assim, sem perceber, eu estava tendo ali, com meu professor de violão, a minha primeira aula de Braille, contra a qual eu tanto resistira durante um ano. Perguntei a ele se os livros eram escritos com aquela máquina, se eles teriam de ser feitos um a um à mão. Ele riu e me contou que havia impressoras específicas capazes de produzir uma grande quantidade de material Braille em tempo reduzido. Eu, sério ouvia tudo atentamente. Continuando a conversa, o professor tomou um papel, colocou-o na reglete e escreveu meu nome; tirou o papel e me deu para que, com a ponta do indicador direito, eu sentisse pela primeira vez, o relevo do meu nome gravado em Braille. Confesso que nessa hora me bateu uma emoção diferente, ao sentir que aquela primeira palavra, de tão forte significado, estava me reabrindo as portas para o mundo da leitura, o qual eu já julgava perdido.
Percebendo meu interesse, o professor resolveu avançar mais e propôs que eu experimentasse escrever, inicialmente apenas furando todos os seis pontos de cada célula Braille da primeira linha da reglete. Explicou-me que cada uma das quatro linhas da reglete era composta de aproximadamente vinte e oito quadradinhos chamados células Braille e que cada uma dessas células abrigava os seis pontos, a partir da combinação dos quais, as letras eram formadas. Fez-me sentir com os dedos, cada uma das quatro linhas e me disse que a reglete se encaixaria na prancheta, em diferentes alturas. Desse modo, deslocando-a para baixo até o fim da prancheta, podia-se utilizar toda a superfície de uma folha do tipo ofício.
A minha primeira surpresa foi saber que eu deveria começar a furar os quadradinhos, da direita para a esquerda, contrariamente à escrita convencional, que se faz da esquerda para a direita. A razão era simples: como o Braille é uma escrita em alto relevo, ao furar o papel com a punção, imprime-se um ponto em alto relevo no verso do papel. Logo, a escrita Braille, quando produzida na reglete, obedece a uma lógica de espelho, isto é, invertida em relação ao modo de se ler. Assim, para ler o que foi escrito, o escrevente deve tirar a folha da reglete e virá-la do outro lado, para só então escorregar os dedos pelas linhas. Lembrou-me que a leitura se fazia normalmente, da esquerda para a direita. O professor gostava de dar explicações detalhadas. Então, começou a me falar sobre a ordem dos pontos, de um a seis. Na escrita, o ponto um seria, assim, o primeiro no alto da célula, à direita, depois dele, o ponto dois seria logo em baixo do ponto um e o ponto três seria bem abaixo do ponto dois. Completava-se assim a coluna da direita da célula. Nessa lógica, o ponto quatro era o primeiro do alto da coluna da esquerda, da mesma célula, e assim por diante até completar os seis pontos, isto é, o preenchimento de todo aquele quadradinho.
Ao premir os pontos no papel, segurando ainda desajeitadamente a punção e acompanhando a sua ponta com o indicador da mão esquerda, conforme o professor havia orientado, a fim de facilitar o direcionamento daquele interessante instrumento de escrita, completei o preenchimento de toda a primeira linha. Tirei o papel da reglete e então o virei para observar com a ponta dos dedos o resultado daquela experiência: uma carreira de quadradinhos impressos em alto relevo, os quais, ao meu tato, contrastavam magnificamente com a lisura e a maciez do papel.
- É isso - me disse o professor – Para os videntes, as letras se formam a partir de seu contraste em cores com o fundo onde estão impressas. Já para nós, o contraste se dá por meio de pontos palpáveis. O filósofo francês Denis Diderot, que viveu no século XVIII, foi o primeiro a refletir sobre a percepção dos cegos. Inclusive, sua obra A Carta Sobre Os Cegos para Uso dos que Vêem, um clássico da filosofia da época, foi o pontapé inicial para a criação de uma pedagogia voltada para as necessidades especiais das pessoas com deficiência visual. Ele foi quem deu a sustentação filosófica para Valentin Hauy, o primeiro a criar uma escola para cegos, e mais tarde para a própria invenção do maravilhoso sistema de Louis Braille.
Depois de me incentivar dizendo que eu levava jeito para aprender, levantou-se de um supetão, bateu uma estridente palma e num tom animado e resoluto disse que nós já estávamos falando demais e que era necessário um pouco de música. Apanhou o violão e começou a dedilhar a esmo. Eu, sem dizer nada, observava tudo extasiado. “Agora, meu filho, ouça isto” – disse-me ele num tom compenetrado. Pigarreou levemente e, por alguns segundos, fez-se naquela sala um silêncio sacral, o qual aos poucos começou a ser preenchido pela mais bela melodia que até então eu já ouvira. Durante pouco mais de dois minutos, aquele som angelical ocupou cada canto da sala, fazendo vibrar, através de meus tímpanos embevecidos, cada molécula de meu corpo. Ao acabar, disse ele após mais um átimo de silêncio:
- Isto é Villa-Lobos, meu filho, Villa-Lobos. Toquei para você a Mazurka Choro, que é o primeiro movimento da Suíte Popular Brasileira, composta entre 1908 e 1923. Sabe, Villa-Lobos foi um compositor genial. Sua obra para violão solo é, com toda certeza, a maior contribuição para o repertório desse instrumento no século XX. É verdade! Todos os grandes violonistas clássicos, tanto brasileiros como estrangeiros, no mundo inteiro, já se debruçaram sobre as obras desse mestre. Apesar de seu imenso talento para executar vários instrumentos, Villa-Lobos, como todo bom brasileiro, possuía um amor especial pelo violão. Um dia, se você quiser, meu filho, e se dedicar para isso, você também poderá tocar as suas obras. Para a nossa felicidade, a maior parte delas está disponível em Braille. Basta você querer. Assim, quanto mais cedo você aprender o Braille, mais progressos irá fazer com a música.
A essas alturas eu era puro entusiasmo. Já estava até mesmo sentindo uma espécie de orgulho de minha deficiência. Tinha esquecido por completo qualquer vestígio de temor ou preconceito contra o universo dos deficientes visuais. Tudo o que eu queria era aprender o Braille e o que mais fosse necessário para que eu pudesse ser igual àquele culto e talentoso professor. Na mesma semana, eu, que era resistente, já estava freqüentando o instituto dos cegos e descobrindo lá um mundo inteiramente novo, mas estranhamente familiar para mim. Passei então a dividir o meu tempo da seguinte forma: Na parte da manhã, continuava o meu curso na escola regular, onde cursava o primeiro ano do ensino médio, e à tarde ia para o instituto aprender o Braille, aprender a fazer contas com o soroban (uma espécie de ábaco muito utilizado pelos cegos), tomar aulas de locomoção e mobilidade, além de canto e violão, é claro. Lá, conheci muitos rapazes e moças de minha idade, com diferentes graus de perda visual, por meio dos quais acabei aprendendo muito sobre a vida cotidiana das pessoas sem visão. Ganhei novos amigos e aprendi muito também sobre as minhas próprias possibilidades. Sentia como se eu estivesse me reconciliando com uma parte de mim que havia ficado meio de lado no meu processo de amadurecimento.
Em menos de um ano já podia perceber os efeitos positivos que aqueles novos aprendizados começaram a fazer na minha vida em geral, e especialmente na minha vida escolar. A escola onde eu cursava o ensino médio era uma escola pública estadual que contava com uma sala de recursos, onde professores especializados auxiliavam os alunos deficientes visuais transcrevendo provas e exercícios para o Braille, gravando textos em fitas cassete e o que mais fosse necessário para que nós pudéssemos acompanhar normalmente os trabalhos escolares. Parecia incrível, mas além de mim, havia também mais outros cinco alunos deficientes visuais freqüentando a sala de recursos. Enfim, eu não estava sozinho e isso era extremamente reconfortante.
Avancei rápido nas lições de Braille. Minha professora era uma senhora cega muito paciente, mas também enérgica quando necessário. O primeiro exercício que ela me deu para fazer foi o de preencher uma folha inteira com os seis pontos das células Braille, tal qual meu professor de violão havia me ensinado em nosso primeiro encontro. Esse exercício servia para que eu automatizasse a posição de cada um dos seis pontos e ao mesmo tempo praticasse o gesto de furar o papel com a punção. Em seguida, passei ao aprendizado da chamada primeira linha do alfabeto Braille, isto é, as dez primeiras letras do alfabeto comum, que em Braille se escrevem utilizando apenas os pontos 1, 2, 4 e 5, deixando de fora os pontos 3 e 6. Desse modo, a letra A é formada apenas pelo ponto 1; a letra B, pelos pontos 1 e 2; o C, pelos pontos 1 e 4; o D, pelos pontos 1, 4 e 5; o E, pelos pontos 1 e 5; o F, 1, 2 e 4; o G, pelos pontos 1, 2, 4 e 5; o H, pelos 1, 2 e 5; o I, pelos pontos 2 e 4; e, finalmente o J, é formado pelos pontos 2, 4 e 5.
Aprendi que esses sinais também servem para representar os algarismos de 1 a 0, na mesma ordem do alfabeto, ou seja, com os sinais correspondentes às letras de A a J, bastando para isso colocar na frente um sinal indicador de algarismo, representado pelos pontos 3, 4, 5 e 6. Após dominar bem a escrita e a leitura dessa primeira linha, comecei o aprendizado da chamada segunda linha, para cuja formação das letras, basta acrescentar o ponto 3 em cada símbolo da primeira linha. Desse modo, representam-se as próximas dez letras do alfabeto, da letra K à letra T. O passo seguinte é aprender a terceira linha, em que a formação dos símbolos se dá acrescentando-se à primeira linha, o ponto 6, sem se utilizar o ponto 3. a partir daí, começamos a perceber que as letras acentuadas têm um símbolo próprio diferente do das letras acentuadas. Assim, o a (ponto 1) mais o ponto 6 forma um Â; o B (pontos 1 e 2) mais o ponto 6 vira Ê; o C (pontos 1 e 4) vira ì; o H (pontos 1, 2 e 5) vira ü; o I (pontos 2 e 4) vira õ); e o J (pontos 2, 4 e 5) vira W. Existem também os sinais da quarta linha, onde se acrescentam aos da primeira linha, os pontos 3 e 6: A (ponto 1) mais pontos 3 e 6, forma a letra U; o B (pontos 1 e 2) mais os pontos 3 e 6, é igual ao V; o C (pontos1 e 4) mais pontos 3 e 6) forma o X; o D (pontos 1, 4 e 5) mais 3 e 6, é igual ao Y; o E (pontos 2 e 4) mais 3 e 6, é igual ao Z; o F (pontos 1, 2 e 4) mais 3 e 6, é igual ao Ç; o G (pontos 1, 2, 4e 5), mais 3 e 6, forma o É. É interessante notar que essa letra se forma com o preenchimento de todos os seis pontos da célula. Continuando, a letra H (pontos 1, 2 e 5) mais os pontos 3 e 6, formam o Á; o I (pontos 2 e 4) mais os pontos 3 e 6, formam o è; por fim, o J (pontos 2, 4 e 5) mais os pontos 3 e 6, formam o Ú. Existem ainda os sinais da quinta linha, formados somente pela combinação dos pontos 2, 3, 5 e 6. Entretanto, essa quinta linha forma apenas sinais gráficos como ponto final, vírgula, ponto de interrogação etc.
Freqüentando o instituto dos cegos, aos poucos fui descobrindo que o Braille não se resumia ao alfabeto. Era muito mais complexo do que isso. As sessenta e três combinações possíveis entre seus seis pontos faziam que um mesmo sinal, uma mesma combinação de pontos, formasse símbolos diferentes, reconhecíveis conforme o contexto em que apareciam. Assim, os pontos 1 e 5 podiam significar, por exemplo, a letra E, ou o algarismo 5 ou uma nota ré em tempo de colcheia. Fui assim descobrindo a cada dia a riqueza desse maravilhoso sistema de leitura e escrita, que é o sistema Braille e fui também me apaixonando por ele, na medida em que tinha cada vez mais acesso a leituras diversas. Os progressos na escola aumentaram e o resultado disso tudo foi que, inspirado naquele meu professor de violão e também em outros, acabei tornando-me também, não um virtuose do violão, embora a música até hoje me acompanhe, mas um professor, dedicado a possibilitar que outros tantos alunos com deficiência visual possam ter acesso ao mundo da leitura e da informação, utilizando o Braille como uma das estratégias mais eficazes para se atingir esse fim.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Contos fantásticos

A pele do judeu

Intrigado por um dito melancólico de Aberramão III, que em quarenta anos de reinado tinha contado catorze dias de paz, o universitário Rui Telmo meteu-se a pesquisar a vida dos Arabes na Península.Entre volumes obscuros, encardidos de tempo e humidades, encafuou muita tarde da sua juventude na sala de leitura da Biblioteca Nacional, a participar em batalhas, algaras e razias, decapitações à cimitarra, intricadas questões de honra e sórdidas intrigas de serralho, rematadas a trago de veneno ou fio de alfange.Já do muito reler lhe não eram estranhos os desaforos do váli de Saragoça, a traição da Taifa de Mértola e mesmo as polémicas sobre o valor do a nos dialectos árabes peninsulares.Ora, ao começo de uma tarde soalheira, instalado no seu lugar habitual, mesmo por baixo da enorme tapeçaria em que ricos-homens coloridos se atiram pesados golpes de durindana, Rui decidiu-se por uma crónica de Ibne Hafeçune Hamude e foi-lhe dedilhando as páginas de estandartes verdes, alfanges reluzentes, traidores crucificados, corcéis em tropeada e rendilhadas invocações a Alá. Em dado momento, deteve-se num lugar, que transcreveu maquinalmente numa ficha:« ... E mais para poente, junto a uma enseada tranquila onde, para sua glória, Alá consentiu que se edificasse a cidade de Lixbuna, afamada por seu hortos, suas minas de prata ... »Não surpreendia Rui esta notícia das minas de prata de Lisboa, agora desaparecidas, mas cantadas em tempos por todos os geógrafos mediterrâneos, e talvez passasse de largo à sabedoria do emir lbne-Ahmed-ÁI-Rashid, que mandou construir navios de bordo alto para defender os rios das incursões normandas, se junto ao texto, sublinhado, não houvesse uma anotação a lápis, muito sumida, rija de decifrar. Eram versos:
Os lugares em que andeiCom vosco ledo e oufanoNesta tristeza os busqueiMas o que neles acheiFoi a meu dano mor dano1
E, por baixo, um número de telefone.Não deixou Rui de se embrenhar na guerra normanda de Ibne Alimed e de seguir aplicadamente o discurso de Mossul-AlBacr na mesquita de Palmela sobre a ilegitimidade do poder, quando exercido com perfídia, mas voltava amiúde à página anotada, relia os versos, decorava o número e via-se não poucas vezes a indagar sobre a autoria daquela mensagem e a cismar sobre as velhas minas de prata de Lisboa.E, pelo fim da tarde, após sair da Biblioteca, com muita hesitação e receio, decidiu marcar o número numa cabina telefónica perto.Assim travou conhecimento com Magda, que lhe apareceu à noite num pequeno café da Graça, por ele indicado e chamado Rosa Branca.Era Magda muito jovem e pequena e macilenta, de gestos nervosos, indecisos. Os cabelos de um louro triste caíam-lhe soltos, sem vida, pelos ombros magros. Cobria-lhe a cabeça uma desusada boina castanha, em que refulgia qualquer fantasia verde. Vestia saia longa, muito travada, como noutro tempo se usou.Os olhos, porém, eram pardos, enormes, ora claros, ora escuros, de tonalidade azulada, violeta, quase negra conforme a ênfase do seu discurso. A fala, muito surda, doce, lenta, contava coisas antigas, de embevecer Rui que, de vida simples, não imaginava poderem certas frases e encadeamentos algum dia aparecer fora dos livros.- Bem haja por ter vindo - ia dizendo Magda. - Porque ainda lá estarão as minas. Empatizamos com o que nos perturba em Trebizonda, com o que jaz oculto em Mohendjo-Daro, mas curamos mal de sentir as vibrações do que, bem visto, nos está ao alcance. A mim, macera-me o não poder descer às minas, de todos sabidas e que ninguém busca. Oh, este cansaço, este olímpico desprezo pelo que nos foi legado, o desatender estulto das mensagens que ficaram...E assim por diante foi discorrendo Magda. Do mesmo jeito antigo ou estrangeiro contou que deixara a anotação no livro, na esperança que alguém a encontrasse e se dispusesse a partilhar aquela inquietação sua. Magda vivia com os avós, muito velhos, muito inertes, e não possuía mais ninguém. Os versos deixados à margem do livro público haviam sido como a mensagem aleatória que o náufrago atira às águas.E quando no silêncio do café se avantajou o ruído da caixa registadora, na conferência final dos dinheiros, e os empregados, já impacientes, começavam a empilhar cadeiras sobre cadeiras, Magda fixou em Rui os seus grandes olhos, agora de um cinzento límpido como o mar de certas invemias, e convidou-o, tímida, para sua casa.
Que ficava muito, muito longe. 0 táxi deixou-os na esquina de uma rua curta em que havia um chafariz de ferro lavrado, de volutas e nervuras iluminadas por um candeeiro ao perto.A portada, lenta, que Magda abriu, dava para um grande vestíbulo de chão de lajedo preto e branco disposto em xadrez. À direita, dominando a entrada, um mameluco de ébano, de tamanho natural, estendia um facho de que a chama era uma lâmpada redonda e fosca. Subiram por uma escada de mármore larga, forrada por uma espessa passadeira de veludo e, no andar superior, entraram cautelosamente no quarto de Magda.Metade do quarto era ocupado por um elefante de verga, que olhava a porta com uma das patas levantada e a tromba pendida, submissa. Do outro lado, um leito de madeiras negras, com dossel rosa desmaiado, e uma cómoda faziam constrastar tons escuros com o colorido gritante de uma máscara africana, empenachada, hiante, que ali parecia explodir na parede.0 quarto de Magda comunicava com outra sala, que ambos percorriam à luz de uma lanterna retirada de qualquer gaveta. A luz incidia sobre miríades de pequenas estatuetas de pedra, de madeira, ídolos, empilhados à toa por todo o lado. Ao indagar surpreso de Rui, Magda seguiu adiante, evasiva, e nada respondeu.Uma porta baixa dava para um desvão, repleto de antigos trastes. De debaixo de um amontoado confuso de caixas, trapos, restos de mobílias, Magda retirou uma pequena arca, forrada de um couro esverdinhado, muito roto, contendo um in-fólio de encadernação corroída, um compasso e uma régua articulada, de madeira carunchosa, e um rolo informe de uma espécie de pergaminho, encardido e enrodilhado.Quando, de novo no quarto, Magda dispunha aplicadamente estes objectos sobre a cama, um por um e por certa ordem, Rui tomou o pergaminho e começou a desencarquilhá-lo com cuidado. Nisto se atardou algum tempo, enquanto Magda o olhava, à espera, com os olhos agora de um negro muito fixo, concentrado. Ao aperceber-se de que era uma pele humana que desenrolava nas mãos, Rui teve um sobressalto e repeliu-a para longe. Então, quedou-se enervado, fitando os olhos em Magda, com uma surpresa magoada.Sem se mover nada, Magda explicou que se tratava de uma pele de judeu, morto há tantos anos que já não havia que arrepiar nem razão de alarme...Em pouco, estendiam ambos a pele no chão, alisando-a desde o escalpe à ponta dos dedos, com vagar. Consultando amiúde o livro, aberto numa folha coberta de linhas tracejadas e de intrincadas figuras geométricas, Magda, com um marcador, muito compenetrada, marcou todos os sinais de pigmentação da pele.Depois, no amplo terraço da casa, caiado de branco, com o ondular de Lisboa iluminada em volta, foi de novo estendida a pele, cuidadosamente, orientando-a Magda, de certa maneira, no sentido da constelação de Orion.De livro aberto, iluminado pela lanterna, Magda foi traçando linhas sobre linhas, umas ligando entre si os sinais da pele do judeu, outras guiadas pelas estrelas da constelação. Noite fora, Rui assistiu ao trabalhar do compasso e da régua, aos elaborados cálculos em que Magda, de ar absorto, se detinha de vez em quando, aos complexos movimentos do marcador, às sucessivas e pensadas correcções que Magda, quase imperceptivelmente, ia fazendo à orientação da pele esticada.Já muito tarde, a pele agora completamente cruzada de linhas negras, Magda arrumou o compasso, a régua e o velho tomo dentro da arca, apagou a lâmpada e deixou ouvir um suspiro de alívio, triunfal, quase alegre.Travou então Rui pelo braço, fê-lo girar sobre si e apontou-lhe um sítio distante, citando:
E duzentas braças contarás Para levante contadas Mil lhe acrescerás De nenhua guiza desviadas A quem sabes prazerás Graças lhe renderás Cá nas terás achadas.
Se estivessem, além estariam, concluía Magda, atrás dos prédios novos que mostrava no horizonte.Rui conhecia a zona. Eram uns edifícios altos e recentes, junto à extrema de Lisboa. Por detrás havia areeiros, lixos, cabanas de ciganagem.Seguiu-se um longuíssimo diálogo, muito em rebates fugazes sobre pausas largas, muito feito de gestos também, em que ambos comentaram o seu sonho e de todas as formas imaginaram as minas a descobrir. Despediram-se, com o compromisso de se encontrarem no sábado próximo naqueles terrenos, de manhã muito cedo, preparados e equipados para os trabalhos que fossem necessários para devolver uma mina a uma cidade. Era noite alta quando Magda acompanhou Rui à porta. A pele do judeu lá ficou no terraço, espalmada no azulejo, passada dos traços lançados das estrelas.
Encostado a uma velha oliveira estéril, engelhada, retorcida, em cujo tronco nodoso via uma antiga incisão triangular, de bordos musgados e irregulares, Rui contemplava de longe os movimentos precisos, contados, de Magda. Dominado por altos prédios descia para o rio, em direcção a Chelas, um terreno desnudo, ravinoso, aqui e além coberto de entulhos e destroços de barracas.Tinham sido ambos pontuais naquele sábado. Mas Magda não cumpriu o prometido sobre equipamentos e ferramentas. Depositara no saco de Rui apenas a lanterna, antes de conduzi-lo para junto daquela árvore, a partir da qual mediu passos, traçou segmentos de recta, interseccionou triângulos e círculos no solo, com uma pequena vara ali recolhida. Rui estranhava-lhe o vestir, o menos adequado a quem diz querer pesquisar entre torrões e poeiras. Desta vez, Magda trazia um longo vestido decotado, vermelho brilhante, quase refulgente ao sol, e em volta do pescoço faiscava-lhe o que parecia ser um rosieler de prata, pesado, lavrado, em completo contraste com os ornamentos simples do outro dia.Enquanto Magda assim deambulava, medindo linhas e sinais, Rui olhava-a como se a visse dançando uma dança muito antiga e perfeita e confirmava-se-lhe a ideia de que Magda era mais que Magda.Mas já ela lhe acenava à distância. E quando Rui, ofegante, chegou perto, indicava, sem dizer palavra, o fundo de uma fenda larga, pedregosa, muito escorrida de águas e lodos nos invernos.E durante horas Rui fez trabalhar o alvião no sítio que Magda apontara. Ela, entretanto, sentara-se no chão, indiferente à sujidade e, de olhar rodando em volta, distraído, ia trauteando baixinho uma espécie de música litúrgica, que Rui, com a repetição, acabou por fixar:
Pede claudo veni fulgoris Domine Repens tange imum cordem luce.
0 Sol ia muito alto e rugia em volta o rumor da cidade, no auge, quando Magda se calou, a meio de uma estrofe. Então, o alvião rompeu a terra e deu em cavo. Sons de pedras roladas em alude tombaram e um buraco negro escancarou-se. Rui deu-se a manejar freneticamente o alvião, a alargar a abertura, e Magda veio ajudar, ansiosa, quase sôfrega, esgaravatando, retirando torrões às mãos cheias.Apontada para o negrume, a lanterna revelou uma câmara de tectos altos que parecia muito espaçosa. Inesperadamente, Magda deslizou para dentro.E pela abertura a mão de Magda veio solicitar a mão de Rui, que só então reparou em como os seus dedos eram finos e alongados.
Guiado por Magda seguia Rui, agora repeso de ter deixado afastar a abertura de entrada, com o seu cilindro de luz iluminando o chão entulhado da galeria ampla em que Magda o esperava, muito hirta, junto às entradas negras de três túneis. Não cabia a esperança de vê-la resplandecer de novo em qualquer volta das galerias, rompendo o negrume, porque Magda fazia o caminho sempre para diante, e para diante não há retornos.Apenas o brilho fátuo da lanterna, minúsculo e errático, lutava contra a treva nas mãos de Magda, que conduzia a marcha com determinação, sem sinais de parar ou indagar sobre onde estava, porque decerto já o teria sabido, quiçá muito antes, na companhia ou conselho de quem sabe quem.Inquieto seguia, pois, Rui, aos tropeços, forçado a optar entre acompanhar Magda, no suceder das galerias sempre iguais na negrura, e a escuridão total, o delir-se no escuro, o sepultamento.Rui nada dizia e a voz do medo ia-lhe só no arquejar, porque estava lembrado dos seus protestos, gritados há pouco e da face de Magda, para si voltada, mal alumiada da lantema, e na face não havia boca.Também já iam abandonados os pensamentos de arrepender-se, de querer estar algures, de não ter sido aquilo, porque agora o contacto com a vida era aquela presença silente e o foco da lanterna a saltar, descobrindo réstias de chão granulado, entulho, manchas de paredes escalavradas, negras, há tanto tempo, incontável, que o tempo parece que fluiu sempre naquelas funduras.Por mais que dobrasse o passo, tropeçando nos vigamentos que suportavam a abóboda de pedra, Rui sabia que não conseguia chegar perto de Magda, embora ela, em dado ponto, parecesse coxear, balançando fortemente o corpo a cada passo.E quando o filão rebrilhou, numa fita prateada e irregular que se estendia de um dos lados, ao correr da rocha, não era já a lanterna que Magda trazia na mão, mas um archote que crepitava e fazia estralejar pequenas fagulhas, clareando a galeria de uma luz amarelada de perfis incertos, que se reflectia na própria fumarada que produzia e se inclinava e balançava ao ritmo das oscilações do corpo de Magda.E a Rui veio a sensação estranha, inexprimível, de que o corpo de Magda e a sombra de Magda, marcada irregularmente na rocha pelo claror do archote, se confundiam.Entretanto, Magda distanciou-se de Rui, oscilando na mancha de luz da tocha, que aspergia chispas e fumo gorduroso, de que Rui sentia os restos, laivos, cá muito atrás, na penosa e trôpega perseguição que promovia a Magda.Já Rui perdeu Magda de vista no cruzar das galerias e tem que se guiar pelo clarão do archote. Por entre as escoras de madeira que sustentam o tecto, os veios de prata brilham sempre.No íntimo, Rui tem de confessar-se opresso, esmagado pelo silêncio, pelo abandono de Magda e pelo negrume compacto, persistente, destas cavernas.Quando a galeria começou a subir em rampa, o brilho dos veios desapareceu. Rui sentiu-se tropeçar no meio de objectos: talhas grandes, caixas de madeira, infusas aos montes, uma roda descomunal. E a luz do archote de Magda, ao longe, tinha sido absorvida por uma mancha de claridade viva que parecia provir de qualquer abertura para o exterior.A figura de Magda esperava-o, à boca da mina, no ponto em que a luz de fora explodia, vibrante e agressiva. Quando Rui, ofuscado, se aproximou, ressoou um rumor cavo, vindo do fundo da terra, e as galerias estremeceram, com desprendimentos de pedras e estalir crespo das vigas de madeira.O corpo de Magda então cresceu, pareceu encher todo o túnel, todos os espaços em volta, e Rui debateu-se contra um turbilhão zunidor, de cores vermelho-vivas, que o revolveu, suspendeu nos ares e lançou ao chão.Súbito, o redemoinho e o tremor de terra cessaram e no lugar em que Magda se encontrava antes, uma serpente negra e grossa pareceu deslizar, célere, para as profundezas.Rui, aturdido, rompeu a luz e saiu à superfície, perseguido pelo estalar de uma gargalhada áspera, ininterrupta, obcecante, vinda de nenhures.E, a pouco e pouco, a paisagem foi-se-lhe tomando nítida, com suas ondulações de colinas suaves, cobertas de vergéis. Errava um cheiro a limoeiro e romãzeira. Ao longe, a cidade.Entretanto, em volta, a gargalhada transformava-se, intermitentemente, num zumbido irregular, mais e menos acentuado, como se mil besouros invisíveis pairassem em círculo. E foi preciso Rui debater-se contra o aturdimento da luz e a perturbação dos ruídos para fixar as muralhas que corriam ao longo de uma colina, coberta de casario, encimada por um alcácer elevado e lôbrego. Por entre as açoteias das casas caiadas avantajavam-se cúpulas terrosas e almenaras esguias, muito rendilhadas no topo. 0 rio, largo e verde, de águas mansas, estava ponteado de navios multicolores, de vela triangular.Não longe de Rui, à beira de uma oliveira, passava um caminho enlameado, cruzado aqui e além por gente de albomoz garrido, ao trote saltitado dos jumentos.Uma pequena multidão formigava lá em baixo, junto às portas da cidade, guardadas por magotes de soldados que se acocoravam indolentemente, com arcos e aljavas estendidos no chão, ao alcance da mão, e os pesados arremessões encostados às cantarias.Quando Rui chegou à estrada, nem os pés se lhe afundaram na lama, nem nenhum dos transeuntes volveu para ele sequer um olhar. À entrada da cidade, arreceou-se em vão de ser interceptado por qualquer das sentinelas.Ao penetrar numa viela estreita com muros de quintais enfeitados de rosas, confirmou, apavorado, que ninguém ali o podia ver e que não havia contacto entre ele e a materialidade circundante.De roldão correu Rui, ululando, por uma rua apinhada de gente, em que se afadigavam mulheres de rosto velado entre pregões de ourives judeus e de vendedores de tapetes que, numa algaraviada gutural, exaltavam as suas mercadorias.Passou paredes e corpos, passou casas, passou muros, passou gente, ganiu e uivou para ninguém ouvir, gesticulou para ninguém ver, pairante por sobre o solo.Os seus próprios gritos, vãos, misturavam-se-lhe na alma com o estridor das gargalhadas de há pouco e com as litanias dos almuadens que, do alto das almenaras, chamavam agora o povo de Lixbuna para a oração da tarde.
No mesmo sábado em que, em Lisboa, inexplicável incêndio destruiu um vetusto solar, há muito abandonado, nas alturas da Lapa, dois meninos ciganos, a brincar numas terras baldias junto ao Arceiro, descobriram, meio soterrado, o corpo de Rui Telmo, nesse dia vitimado por qualquer aluimento. Os inquéritos policiais nunca conseguiram apurar as causas do alude, nem a razão por que o moço universitário se decidira a escavar naquele sítio.

(1)Do Cancioneiro de Rezende. Francisco de Sousa.


In Contos da Sétima Esfera, Lisboa, Caminho, 1990.

Mário de Carvalho, Biblioteca online do Conto

sábado, 9 de maio de 2009

O sol e o menino dos pés frios

Era uma vez uma casa. Muito grande. Com um tecto altíssimo, nem sempre azul. Uma casa enorme onde habitava uma grande família: uma família tão grande que, por vezes, não julgavam os seus membros que se conheciam. E se deviam amar.
Houve um menino que entrou nesta casa estava ela toda branca. No chão tapetes de neve, cristais de água de uma brancura que estremecia. E as próprias árvores escorriam essa brancura. E frio. Iluminava-a uma estrela tão brilhante que, sobre o tecto, parecia que poisava sobre as nossas mãos.
Ora um dia, em que fazia anos em que esse menino entrara nessa casa, outro menino por ela andava com frio. Pelo chão, pelos milhões de cristais, caminhavam os seus pezitos enregelados. Tanto frio que nem podia olhar a estrela brilhante. Nem os milhões de cristais que pisava.
Uma mulher chorava a um canto dessa casa. E era triste essa mulher. Estava triste e cansada. Na casa nem tudo era belo. Ali estava aquele menino cheio de frio. E, como ele, tantos meninos.
E, já há quase dois mil anos, um menino entrara na asa, que ficou mais clara com a luz brilhante do tecto. O menino entrou só para dizer uma palavra pequenina: AMOR.
Então essa mulher perguntou ao menino dos pés frios:
– Tu não tens a tua casa?
O menino olhou a mulher triste e ficou triste. Ambos estavam tristes. E disse quase envergonhado que não.
– Tu não tens roupa? Sapatos? Um lume? Pão?
A cabeça (tão linda!) do menino ia abanando sempre a dizer não. A mulher triste começou a ter vergonha. Então ela consentia que na sua casa, na casa de todos, de tecto nem sempre azul, houvesse um menino sem roupa, sem lume, sem pão? Ela consentia uma coisa assim? E os outros também?
Escorregaram-lhe pela face já enrugada duas lágrimas transparentes. De água. Água como a que tombava do tecto, como a que se estendia nos mares.
E perguntou mais ao menino:
– E para onde vais? Eu dou-te qualquer coisa para o caminho...
O menino olhou para ela admirado. Não lhe disse para onde ia. Observou-lhe apenas:
– Tens duas gotas de água nos teus olhos que reflectem o céu azul e a lâmpada do tecto. Não sentes?
A mulher deixou cair pelo rosto enrugado as duas lágrimas. A pele, então, ficou-lhe mais lisa. E ela tornou-se menos curva. Ergueu-se. Estendeu, sorrindo, os dois braços ao menino. E disse:
– Fica. Perdoa.
E o menino ficou. Nos seus braços. Encostado ao seu peito. Com os pés aquecidos sobre o campo de neve.
E a mulher entendeu que não adiantava chorar ao canto da casa. E o seu vestido era uma bandeira. E o seu coração uma flor. Com o menino a seu lado.
A FITA VERMELHA
Eu tinha começado a ensinar. Era muito nova então. Quase tão nova como as meninas que eu ensinava. E tive um grande desgosto. Se recordar tudo quanto tenho vivido (já há mais de vinte anos que ensino), sei que foi o maior desgosto da minha vida de professora. Vida que muitas alegrias me tem dado. Mais alegrias que tristezas.
Se vos conto este desgosto tão grande, não é para vos entristecer. Mas para vos ajudar a compreender, como só então eu pude compreender, o valor da vida. O amor da vida. O valor de um gesto de amor. O seu «preço», que dinheiro algum consegue comprar.
Eu ensinava numa escola velha, escura. Cheia do barulho da rua, dos «eléctricos» que passavam pelas calhas metálicas. Dos carros que continuamente subiam e desciam a calçada. Até das carroças com os seus pacientes cavalos.
A escola era muito triste. Feia. Mas eu entrava nela, ou digo antas, em cada aula, e todo o sol estava lá dentro. Porque via aqueles rostos, trinta meninas, olhando para mim, esperando que as ensinasse.
O Quê? Português, francês. Hoje sei, acima de Tudo, o amor da vida.
Com toda a minha inexperiência. Com todos os meus erros. Porque um professor tem de aprender todos os dias. Tanto, quase tanto ou até muito mais que os alunos.
Mas, desde o primeiro dia, compreendi que teria nas alunas a maior ajuda. O sol, a claridade que faltava àquela escola de paredes tristes. A música estranha e bela que ia contrastar com os ruídos dos «eléctricos», dos automóveis da calçada onde ficava a escola. Até com o bater das patas dos cavalos que passavam de vez cm quando.
Porque, mais que português e francês, havia uma bela matéria a ensinar e a aprender. Foi nessa altura que comecei mesmo a aprender essa tal matéria ou disciplina – ou antes, a ter a consciência de que a aprendia.
Eu convivia com jovens (seis turmas de trinta alunas são perto de duzentas) que no princípio de Outubro me eram desconhecidas. Cada uma delas representava a folha de um longo livro que no princípio de Outubro me era desconhecido. Todas eram folhas de um longo livro por mim começado a conhecer. Não há ser humano que seja desconhecido de outro ser humano. Só é precisa a leitura.
Eu tinha agora ali perto de duzentas amigas. Todas aquelas meninas confiando em mim, esperando que as ensinasse; sorrindo, quando eu entrava, assim me ensinavam quanto lhes devia.
Mas um dia. Eu conto como aconteceu o pior. E conto-o hoje, a vós, jovens, que me podem julgar. Julgar-me sabendo este meu erro. E evitarem, assim, um erro semelhante para vós mesmos.
Já era quase Primavera. Na rua não havia árvores nem flores. Só os mesmos carros com o seu peso e a violência da sua velocidade. Gritos de vez em quando. Uma Primavera só no ar adivinhada.
Numa turma uma aluna faltava há dias. Era a Aurora.
Morena, de grandes olhos cheios de doçura. Talvez triste.
A Aurora estava doente. Num hospital da cidade, numa enfermaria. Num imenso hospital.
Olhei o retratinho dela na caderneta.
Retratinho de «passe», num sorriso de nevoeiro de uma modesta fotografia. Tão cheia de doçura a Aurora! Doente, do hospital tinha-me mandado saudades.
– Vou vê-la no próximo domingo – anunciei às companheiras.
E tencionava ir vê-la mesmo no próximo domingo.
Mas o próximo domingo foi cheio de sol. Sol do próprio astro, quente, luminoso. Igual e diferente, ao mesmo tempo, do sol-sorriso das meninas.
E eu, a professora, ainda jovem, que gostava do sol, fui passear. Ver mar? Campos verdes? Flores?
Já nem me lembro. E da Aurora me lembraria se a tivesse ido visitar.
Começava a Primavera.
Adiei a visita naquele próximo domingo, para outro dia, para outro próximo domingo.
Hoje sei que o amor dos outros se não adia.
Aurora esperou-me toda a tarde de domingo, na sua cama branca, de ferro.
Tinha posto uma fita vermelha a segurar os cabelos escuros. Esperava-me, esperava a minha visita, cuja promessa as companheiras lhe haviam transmitido.
Veio a família: mãe, pai, irmãos, amigos, as colegas.
– Estou à espera da professora...
No dia seguinte a doença foi mais poderosa que a sua juventude, a sua doçura, a sua esperança.
A cabeça escura, sem a fita vermelha, adormeceu-lhe profundamente na almofada, talvez incómoda, do hospital.
Sabemos todos já, amigos, que há vida e morte. Também isso temos de aprender.
Não fiquem tristes por isso. Vejam como as flores nascem quase transparentes da terra, como as podemos olhar à luz do Sol, e morrem, para de novo nascerem.
Lembrem-se como de um ovo de um pássaro podem sair asas que voem tão alto em dias de Primavera. T morrem, também, e todas as primaveras nascem de novo. E, sobretudo, lembrem-se do coração de cada um de nós, desta força imensa.
E não adiem os vossos gestos. Procurar alguém que sofra, que precise de nós, nem sequer é um gesto generoso, deve ser um gesto natural que se não adia.
Às vezes até precisamos uns dos outros para dizermos que estamos felizes, contentes. Só para isso. Mesmo felizes precisamos dos outros.
Aurora ensinou-me para sempre esta verdade.
As lágrimas que por ela chorei já não lhe deram aquela visita do próximo domingo.
Nem a mim a alegria de a encontrar sorrindo, cheia de doçura, com uma fita vermelha a prender os cabelos escuros. Vermelha de sangue, como a vida. O Sol. Flores vermelhas.
Aurora era o seu nome. E a sua vida uma manhã apenas que, na minha distracção ou egoísmo, não tive tempo de olhar. Uma manhã com uma fita vermelha. Que lágrima nenhuma pode reflectir.


MATILDE ROSA ARAÚJO

sábado, 2 de maio de 2009

A menina que queria engarrafar o tempo

Era uma vez uma menina chamada Inanna. Ela era muito sabida e só gostava de coisas boas - sorvete, jogar bola, brincar de boneca.
A vida de Inanna era mais deliciosa que bala de hortelã. Acordava todo dia com o sol, conversava com os passarinhos na janela, trocava de roupa e corria para brincar com suas fadas e bruxas dos livros. Quando chovia, era a deusa da vida - cantava e cantava - e as flores nasciam no jardim.
À tarde ia para a escola e lá encontrava seus amigos. E se transformava na estudante que queria crescer logo para fazer o que quisesse dessa vida - ser flor, médica, professora ou qualquer outra coisa. Quando a noite se aproximava, fechava os olhos e dormia com Pinóquio, Peter Pan, Chapeuzinho Vermelho e em alguns dias com a Pequena Vendedora de Fósforos - todos moradores das histórias que seus pais contavam.
Um dia aconteceu uma coisa muito triste na vida dessa menina e lá naquela vida tão bonita começaram a aparecer dias muito iguais e sem alegria.
E Inanna decidiu que queria engarrafar o tempo.
Porque? Porque ela não conseguia aceitar que as coisas boas que aconteciam tinham que acabar assim, assim, sem mais nem menos. Achava que se engarrafasse partes da vida conseguiria manter para sempre, na estante, somente os momentos bons e não precisaria sentir saudades.
Um dia, quando estava no quarto, pensando nessas idéias de gente grande, apareceu, de dentro de um livro uma bruxa! Não era uma bruxa daquelas de mentirinha não! Era uma bruxa muito de verdade, dava até para pegar e apertar. A menina não teve tanta coragem assim, para ir apertando e tal. Mas só de olhar sabia que podia dar um apertão igualzinho aquele que a tia dava na bochecha dela. Mas sabia também que apertão era muito ruim, porque a gente não é de apertar como as frutas do mercado, pra ver se está boa. A gente é de olhar e de abraçar.
E bem devagarzinho, foi chegando perto da bruxa, que olhava desconfiada para aquele quarto cheio de coisas bonitas. De repente desapareceu e apareceu na frente da menina, que levou um susto!
Inanna perguntou: - Qual o seu nome?
- E a Bruxa respondeu: Isthar
- E isso lá é nome de Bruxa?
E a mulherzinha, muito brava, respondeu: - Você está vendo alguma vassoura?
-Não!
- E você já viu Bruxa sem vassoura?
A menina pensou, pensou e achou que aquela mulher tinha razão. Mas se não era Bruxa, o que era ? Como podia ser velhinha, curvada, ter verruga no nariz e não ser Bruxa? Mas ela não tinha vassoura e nem era tão baixinha assim, porque a Inanna tinha 8 nos e a mulher era até mais alta que ela!
A mulher voou sem vassoura e por onde passava uma fumacinha, igual a do gênio da lâmpada do Aladim, a seguia. Será que era uma gênia?
E Inanna ouviu uma história muito difícil de entender. A tal da Isthar era uma deusa, dessas das histórias bem antigas, e já existia muito antes de tudo existir. E dá para imaginar uma coisa dessas? Para não embaralhar a vida das pessoas, controlava todo o tempo do mundo, desde que tudo existe. O dia, a noite e quando estava com preguiça deixava o tempo passar bem devagarzinho e esperava todo mundo dormir para fazer o tempo passar bem rápido, compensando o chamado ‘tempo perdido’. Tinha poderes mágicos – dizia que conseguia controlar o tempo passado, ver o presente, mas nunca conseguia saber do futuro.
A menina, muito assustada, não conseguia entender direito o que significava aquilo tudo.
A deusa explicou: - Você me chamou, lembra? Falou que queria engarrafar o tempo e eu trouxe uma estante pequenininha que cabe dentro da sua bolsa e algumas garrafas mágicas. Quando você quiser engarrafar um momento da sua vida é só esperar ele acabar de acontecer, abrir a tampa da garrafa, esperar ele entrar. Então você fecha e põe na estante.
Mas existem algumas condições para que você possa fazer isso. Uma dessas garrafas não pode ser aberta.
A menina, assustada, perguntou: Mas vou saber qual delas não posso abrir?
E a deusa respondeu: - É fácil, uma delas é mais brilhante que as outras. Essa é a proibida. Mas todas as outras são suas. Depois que engarrafar seu momento feliz você nunca mais se lembrará dele. Mas poderá vê-lo na estante, encostar as mãos na garrafa, sentir aquela coisa boa no coração e, se quiser, poderá entrar na garrafa e viver tudo de novo. Mas quando sair de lá não se lembrará de nada.
A menina adorou aquela história toda. Garrafinhas mágicas...resolveriam todos os problemas de sua vida. Aceitou e agradeceu a Deusa Isthar.
Nos primeiros dias ficou com muito medo de usar aquelas garrafinhas. Mas um dia, após ter vivido um momento difícil, achou que era hora de testar aquela oferenda. Esperou uma noite inteira passar e outro dia chegar.
Quando o sol estava brilhando lá no alto do céu, tomou um sorvete e sentiu muita alegria. O dia estava quente e o vento soprava bem de levinho e aquilo era delicioso. Inanna não esperou – abriu a garrafa e um ventão soprou, soprou igual furacão e lá estava aquele momento, uma miniatura dentro da garrafa – a menina, o sol, o sorvete e até o vento levinho.
E assim, por muitos dias, colecionou seus momentos felizes dentro das garrafas - as histórias que o pai contava a noite, o passeio com os colegas, a nota boa da escola, a viagem até a casa da avó, o batom cor de rosa que ganhou da mãe, o bolo de aniversário e mais um montão de coisas.
Percebeu, intrigada, que as garrafas nunca acabavam.
Quando ficava chateada só precisava escolher um momento engarrafado, encostar a mão e como mágica aquela sensação boa chegava e ela pulava lá para dentro e ficava feliz.
Mas o tempo foi passando e a Inanna começou a cansar daquelas mesmas sensações e percebeu que vivia mais dentro das garrafas do que no mundo de verdade. E como não se lembrava de nada depois que saía de lá, a menina passou a sentir que dentro dela só sobrou um vazio muito grande. Sensações, sem lembranças. E lembrança faz uma falta...mesmo aquelas que trazem a saudade.
Todos os dias olhava a garrafa proibida, que brilhava e brilhava. Às vezes parecia que quanto mais engarrafava sua vida nas garrafinhas sem cor, maior era o brilho daquela garrafa que não podia abrir. Doía até os olhos de tanto que brilhava. A curiosidade foi crescendo, mas ela não ousava desafiar as ordens da deusa..
Certo dia percebeu que só se lembrava das coisas ruins, pois eram aquelas que não tinha engarrafado e sua vida estava mais chata ainda do que antes de conhecer a Isthar.
Começou a chorar baixinho e não sabia mais o que fazer quando resolveu quebrar todas as garrafas, menos aquela que brilhava, pois a bruxa, ou melhor, a deusa, ficaria muito brava! Tem pessoas que a gente não desobedece por nada desse mundo!
Foi uma barulheira danada! Crash, póft, póft, tum, tum, creck, criiiiim, póft!
Quando quebrou sua última sensação, começou aquele ventão dentro do quarto e a deusa Isthar reapareceu, após muitos anos.
E não ficou nem um pouquinho brava com aquela bagunça toda. Você acredita? Deu uma ordem e tudo foi para seu lugar. Até as garrafas foram consertadas! Mas estavam vazias de novo. E depois insistia em dizer que não era bruxa!
Talvez deuses também façam mágicas com seus super poderes.
E, com um olhar carinhoso, Isthar pegou aquela garrafa bonita e brilhante e deu para Inanna. A menina não entendeu nada. Porque agora tinha que abrir aquela garrafa?
A deusa disse: - Se você a abrir nunca mais poderá engarrafar seus momentos no tempo. Tem certeza de que quer saber o que está aí dentro?
E a menina, que estava arrependida de seu desejo de engarrafar seus momentos, resolveu abrir.
A deusa sorria enquanto observava os pensamentos passando correndo pela cabeça da menina. Até pensamento conseguia ler!
E de repente, Inanna fechou os olhos e com muita força abriu a garrafa. Ouviu uma explosão com cheiro de doce! Era o melhor momento de sua vida! A garrafa chamava-se presente. E esse momento e tantos outros presentes nunca mais foram engarrafados, porque Inanna descobriu algo muito valioso: - sensações não têm valor se não forem lembranças.


Fernanda Macahiba Julho de 2008

quinta-feira, 23 de abril de 2009

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Leão Velho

Este é um conto escrito para ser lido numa tarde de Verão, quando as sombras ainda mal gatinham pelo pavimento do pátio, e o coração se desprende do interior da carne, dirige-se para além do horizonte, e ao regressar, o coração, ele mesmo, volta em seu estado puro e selvagem trazendo consigo a síntese de todas as coisas. Para tanto a planície deve ser ampla, a varanda tem de ser térrea, o telhado deve ser baixo, próprio duma região temperada, 38 graus na Latitude Norte. A esse propósito, um pesado Atlas Planeta Agostini existe por ali, e de vez em quando costuma ser folheado com rigor, ainda que neste momento não esteja visível.A porta da sala do bilhar, essa sim, encontra-se aberta e os tacos enfileirados descansam na estante. Lá fora os jornais desportivos estão arrumados sobre o muro, unidos por uma pesada pedra. Sobre a mesa de madeira devem estar pousados três copos, uma garrafa de Cutty Sark e um recipiente de metal envolvido na respectiva toalha. Também a pinça do gelo se encontra alçada na borda, pesada como uma alfaia. Deve acrescentar-se que a mão direita que a maneja é a do proprietário da casa, e essa mão robusta, queimada pelo sol, está coberta de sardas. Não admira. Como sucede aos fins de semana, o proprietário recebe os seus dois amigos chegados, as duas únicas pessoas que à face da Terra lhe parecem dignas desse nome suave. Eles ali estão. Ao todo são três homens encostados nas espreguiçadeiras, bebendo com pequenos goles as respectivas rações de uísque. Tal como seria de esperar, o elemento sonoro desceu para a escala do quase nada, pois para além do ruído dumas aves esvoaçando na direcção da lagoa, tudo quanto corta o silêncio se resume à fina batida do gelo, aos breves cliques do isqueiro, ao rápido riscar do fósforo, ao sopro sobre a chama pálida. Entendamo-nos desde o início – É no interior do coração destes homens reclinados, como se estivessem à beira duma sesta interminável, protegidos pelas telhas de barro, que as coisas acontecem. E no entanto, à primeira vista, dir-se-ia que os três homens o que pretendem é que o tempo os conserve imóveis e intactos. Três homens a viverem aquele interim durante o qual nenhum pensamento volta para trás, nenhum pensamento foge para diante, entregues ao simples desejo de matar o instante, uma forte vontade de suspendê-lo, dilatá-lo, transformar aquele momento num simulacro de eternidade. Nada para pensar, nada para dizer, nada para reclamar. Isso poderá imaginar-se a partir da lagoa, esse sítio geodésico para onde os pássaros convergem. Mas quem deixou um livro aberto ao lado do tabuleiro onde estão a garrafa e o balde, e há umas boas horas regressou da volta pela lagoa, sabe que assim não é. Pelo contrário, os três homens estão parados para organizarem uma acção e prepararem um movimento.Um deles diz – “Passe-me aí o gelo”.Sim, os três homens estão à espera, e precisando melhor, aquela é uma tarde de Sábado. O anfitrião não é conhecido nas redondezas, mas chama-se Santos Manuel, e ele próprio não enjeita esse estatuto de vizinho mistério, ou pelo menos nada faz contra isso, mas quando uma carta se perde há sempre quem saiba a quem pertence. Como já se afirmou, a sua mão é robusta e sardenta, mas ainda não se disse que o seu corpo, em proporção, é bem mais delgado do que o seu pulso, como se um exercício específico lhe tivesse avolumado o braço. Aliás, a sua estatura é meã, quando comparada com a dos seus companheiros, por sinal bem contrastivos entre si. Um deles é baixo e franzino, um homem em abreviado, sumindo-se no amplo espaço da espreguiçadeira. O outro, pelo contrário, é alto, corpulento, e sob o seu peso, ao mínimo movimento, o plástico chia e estremece. E esse contraste entre ambos até nem teria importância, se não se desse o caso de se chamarem os dois homens, respectivamente, Orlando Petit e João Fortaleza, como se os nomes de família tivessem sido premonitórios dos seus atributos físicos. Como se houvesse uma ligação ancestral entre os apelidos e os talhes. Mas essa caricatura, por curiosa que seja, apenas à primeira vista confere um traço de burlesco àqueles dois homens. Quando reunidos, uma pessoa esquece. Naquele momento, o que interessa é que ambos estão concentrados sobre o mesmo objecto. Petit e Fortaleza não param de olhar para o tampo da mesa sobre a qual, para além dos kits da bebida e do fumo, e do livro pousado, se encontra um telefone portátil, e é para aí que os olhares dos dois homens convergem. Esperam que toque, não toca. Aconteça o que acontecer, o melhor é esperar. Agora mesmo o aparelho desencadeia o seu sinal de chamada, e os três homens saltam ao mesmo tempo nas cadeiras, mas quem vai atender é o mais leve, é Orlando Petit. Aliás, o telefone não toca, propriamente, coaxa, e também se move sobre a mesa, imprimindo movimento ao balde e à madeira. Alguém colocou o vibrátil e o som de coaxar na mesma potência. A resposta do lado de cá, também em voz alta, enche o pátio e a casa, pois Petit não responde, Petit grita a plenos pulmões, perguntando no meio do pátio – “Já se encontraram com os guardas? Então, onde é que eles estavam? Não me diga!” Quem agora alcançou o livro e o abriu ao acaso, pode ver Petit a escutar o que do outro lado lhe dizem, pode vê-lo a virar-se e a rir. Os seus olhos pequenos, no rosto miúdo, a fecharem-se de tanto rir na direcção dos companheiros. Já havia desligado e ainda continuava a rir perdidamente. “De que se ri você?”Petit mal consegue pronunciar as palavras de tanto rir - “Calculem que os tipos se viraram para a paisagem quando a furgoneta passou. Podem imaginar uma brigada inteira, de costas para o trânsito, a olhar para as árvores? Os gajos sabem muito bem que podem recolher o dinheiro que lá mandámos pôr debaixo dos pratos, no restaurante mais próximo...”Mas tanto o anfitrião quanto Fortaleza continuam sérios. Continuam estendidos nas cadeiras de espreguiçar que os colocam rente ao chão, e não se manifestam. Entretanto o telefone, tendo voltado ao centro da mesa, não tardou que não regressasse à vibração do coaxo. Como se a hilaridade do amigo franzino não contasse para nada, o anfitrião perguntou – “Petit, você sabe, concretamente, onde se encontra a viatura, neste momento? Você apurou, por acaso, quanto tempo ainda falta para chegarem à Silveira?” O homem pouco encorpado consultou o mostrador do telefone que vibrava sem cessar e respondeu – “Se já chegaram à Silveira não sei, mas a verdade é que já nos chamam de lá”.Então o companheiro robusto, o Fortaleza, ergueu-se com estrondo da espreguiçadeira e fez menção de se apropriar do telefone. João Fortaleza, em pé, em todo o esplendor da sua corpulência, o esplendor do seu ventre proeminente, o esplendor dos seus braços com os quais já emitia insultos ainda antes de falar, ameaçou – “Não atendam esse telefone. Se atenderem, ainda eles vão duplicar a parada. Os cabrões desses filhos da puta começaram por pedir cinquenta contos pela pernoita, depois foram aumentando, aumentando, a última vez que falámos já estavam em duzentos e cinquenta, nada menos do que cinco vezes mais do que tinha sido acordado. Duzentos e cinquenta contos pela pernoita dum animal, ao relento, em campo aberto, é uma chantagem. Grandes filhos da puta. Daqui em diante, sempre que atendermos o telefone, eles sobem o valor com se fosse um leilão de móveis. Francamente, você acha bem, doutor, que vá pagar trezentos ou quatrocentos contos pela pernoita de um animal refugado do Jardim Zoológico? Você já viu o ridículo em que se está a colocar?”“Fale baixo, homem”.Fortaleza falava mais baixo mas mantinha o tom escandalizado – “Quatrocentos, quinhentos contos por uma noite? Seus filhos da mãe. Só lhes digo que vai ser um pratinho dos diabos se isto se sabe...”Fortaleza e Petit tinham começado a deambular pelo pátio, Fortaleza a grandes passadas lentas, Petit, rápido, com pequenas passadas rápidas. Os dois percorriam o mesmo espaço ao mesmo tempo e cruzavam-se diante de Santos Manuel. O proprietário, estendido na mesma posição, quase rente ao solo, olhava para longe, na direcção da lagoa, e permanecia calado como se estivesse a dizer – Quanto vale a pernoita dum bicho daqueles? Seja quanto que for, não importa. Isto deixou de ser um valor, passou a ser um imposto sobre a minha determinação, ou outra qualquer coisa que lhe queiram chamar. Um desejo, por exemplo. Alguém sabe dizer por quanto se arremata um desejo? Para quem estivesse sentado diante do livro aberto, o rosto do anfitrião dizia isso mesmo, e estava de perfil. O perfil nem bulia. Podia-se confirmar, a partir desse ângulo, como a sua cara tinha tudo a ver com a sua mão. Não que o rosto apresentasse sardas, mas a cor da pele oscilava entre o castanho e o rosado. O próprio cabelo, entre o ruço e o branco, conferia-lhe um ar açafroado, como se houvesse descido duma latitude bem mais elevada e a sua tez tivesse feito um esforço considerável para conviver com o sol meridional. Precisamente, a descer, muito vivo, o resplendor do sol batia-lhe na cara. O telefone tinha-se calado por si, ninguém havia atendido. Percebia-se que a mesma obsessão separava os três homens, a mesma obsessão os unia. Deviam estar a formular pensamentos próximos, utilizando palavras próximas, para se referirem ao mesmo objecto, talvez a mesma finalidade. Adivinhava-se que eram três discursos de três pessoas distintas como se fossem uma só. No meio daquele silêncio entrecortado pelos passos dos dois companheiros, cujo som cadenciado produzia alguma coisa de ameaçador e marcial, o proprietário, sempre a olhar na direcção da lagoa, perguntou o que os outros também deveriam estar a perguntar - “E como irá o bicho passar esta noite?”“A última noite do bicho, como será?”Fortaleza não deveria responder. Respondeu. E fê-lo de novo em voz bem menos moderada do que seria conveniente, irrompendo diante do anfitrião, com o dedo apontado – “E vamos perguntar isso pelo telefone? Desde ontem que eu venho a avisar que é melhor ninguém entrar em contacto. Vamos despender mais cem ou duzentos contos, só para mantermos os outros bichos resguardados do nosso? E quanto mais não irão exigir ainda para alimentar o animal? Quanto mais? Afinal o bicho é ou não é para abater? Se é para abater para quê alimentá-lo à grande e à francesa?”A sombra de Fortaleza alongava-se pelo pátio mas as suas palavras, tocadas por uma ponta de cólera, pareciam de novo não atingir o proprietário da casa. Dava para perceber como ao longo dos anos, entre os três homens se havia formado uma espécie de triângulo escaleno, sendo Petit e Santos Manuel muito mais próximos um do outro do que de Fortaleza. A prova é que Petit, como se acordado pelas palavras de Fortaleza, e como se elas não contassem para nada, muito menos o seu tom agastado, pegou no telefone e chamou por alguém com quem se pôs a falar, prevenindo a pessoa, como ele mesmo dizia, dos vários passos concretos para a noite que iria chegar, os diversos cuidados, os vários trâmites inultrapassáveis. Andando de cá para lá no meio do pátio, ouvia-se Petit perguntar - “Já chegou? Como chegou? Chegou estafado? Babado! O que se passou então?” Ouvia-se Petit perguntar e depois já não se ouvia, porque o amigo mais próximo do dono da casa havia saído do pátio e falava agora por entre o arvoredo ralo, incendiado de vermelho, naquele ocaso de Agosto. “Porreiro!” – Ouvia-se. Quando finalmente Petit regressou, já o anfitrião se tinha levantado. Os três homens estavam em pé, olhando-se sem se verem, vislumbrando alguma coisa para além deles mesmos que os tornava próximos e atados uns aos outros por um cinto de natureza indestrinçável. Um grupo de homens inseparáveis quando vistos a partir do livro pousado no regaço. Mesmo assim, era preciso dizer qualquer coisa. O anfitrião disse - “Caro Fortaleza, você parece querer destruir este plano. Você agora está empenhado em desfazer o que fez. Então estamos conversados...” E os três homens sentaram-se em cadeiras de espaldar dispostas em volta da segunda mesa. Por um momento, Fortaleza ficou imobilizado, só depois reagiu – “Destruir eu este plano? Querer desfazer o que fiz?”Não, não era verdade, ele não pretendia destruir nada, pelo contrário, e Santos Manuel sabia-o muito bem. Que ideia era aquela?O companheiro mais forte estava surpreendido, e não era para menos. Desde há muito que os três se encontravam unidos no mesmo projecto, não só porque tinham caminhado unidos a partir do mesmo passado, como a proximidade de ideias e pensamentos continuava a colocá-los diante de metas idênticas. Os três tinham vindo da mesma experiência longínqua ocorrida em territórios amplos, lá onde a vida merecia a pena ser vivida, com tudo o que de melhor existe na Terra, em termos de dimensão, desafio e grandeza. E a esse propósito, quando falavam, eles só proferiam a breve palavra lá, porque se recusavam a referir o nome de países definitivamente estrangeiros, que então faziam parte duma só unidade indivisível, e por isso não só se recusavam a nomear esses países, como a região e até o continente onde tudo isso se passava, de ofendidos que estavam. Ainda que também não nomeassem essa ofensa, para não credibilizarem a realidade que a criara. Às vezes pensavam. Não queriam pensar. Mas vinha-lhes à cabeça a configuração da cidade onde os três se tinham conhecido e vivido, a cidade com seus portos orientais, seus guindastes de braços alçados, seus mercados indígenas coloridos, e seus bairros de caniço perfumados. E havia o banco. Por vezes pensavam no banco. Não queriam pensar. Pensavam. Fora esse banco nacional ultramarino, cujo nome também se recusavam a proferir, que afinal os unira, na altura em que já não eram solteiros mas eram livres. Em posições diferentes, já se vê. Santos Manuel, o anfitrião, fora o director desse banco, enquanto Fortaleza tinha sido um funcionário de base, uma pessoa que vivia diante da caixa a contar as notas com os dedos molhados em almofadas de esponja, unidade atrás de unidade, até os dedos ficarem gretados. Petit havia sido um funcionário intermédio, muito mais próximo do director, no interior da pirâmide de que faziam parte, mas o que os unira não fora o local do trabalho, fora alguma coisa bem exterior à realidade bancária. O que os tornara próximos como se fizessem parte de um clube secreto com sua iniciação, juramento, segredo e missão, havia sido o safari. Dois, três, cinco, vinte safaris que haviam ficado definitivamente gravados nas suas vidas. Os safaris, com os percursos, as cargas, as tendas, as fogueiras, as coutadas, de que haviam fixado os nomes como se fossem quintas de família, e de que no entanto, passado todo este tempo, se recusavam a falar. Nem lembravam. Só involuntariamente lembravam. Como se além de homens fossem também plantas sarmentosas, cujos caules e raízes em parte estivessem lá. E por isso era injusta a insinuação do ex-gerente, Dr. Santos Manuel da Veiga, ao ex-funcionário de base, João Fortaleza. Como homem que havia contado um número infinito de notas, e conhecera nos últimos momentos vividos lá, o que fora o roubo, a vilania, o saque, a ignomínia, e ficara a conhecer a natureza humana, mil vezes mais vil do que a dos bichos, conhecedor de tudo isso, agora, só porque queria proteger o projecto, é que receava a chantagem. Uma chantagem que se não fosse cortada cerce, bem poderia avolumar-se passando da chantagem sobre a pernoita, à chantagem sobre o segredo da operação do dia seguinte. Que o desculpassem, o doutor e Orlando Petit, mas ele era um homem marcado exactamente por isso, pela chantagem. E que desculpassem também se entrava na zona da cólera, mas não admitia que pessoas que se diziam honestas, faltassem à palavra, praticassem o roubo e a extorsão, como norma, tal como vira lá, tanto da parte dos que partiam quanto dos que ficavam. Afinal fora ele quem tinha falado com o administrador da Herdade da Silveira, fora ele quem havia combinado a pernoita apenas por cinquenta contos, e já achava uma generosidade, e por um aproveitamento da situação irregular em que se encontravam, estavam a pô-los de rastos. Fortaleza via turvo, imaginava logo esses anos que não nomeava, o saque que também não nomeava, e ficava transtornado. E por isso pedia desculpa a ambos, mas que não duvidassem de que se encontrava de alma e coração com aquele projecto. Não iria reproduzir, no entanto, tudo o que lhe acudia à cabeça, naquela situação. Apenas iria dizer a Petit e Santos Manuel - “Desculpem, já aqui não está quem falou. Eu só faço o meu papel, eu aviso...”“Fale mais baixo”.“Desculpe”.A tarde descia imponente, os pássaros voando sobre a lagoa faziam parte dessa imponência, desenhando círculos no espaço. A ilusão de que a Natureza emite sinais decifráveis criava a ideia de que os patos-reais chamavam para o movimento. Os três homens seguiam em silêncio o trajecto das aves. À vezes, quando chegava o Outono, era sobre elas que treinavam os dedos. Orlando Petit acabou por dizer - “Estou convencido que em matéria de contas, o assunto já está encerrado. Não ouviram há bocado eu falar com os tipos? Agora vamos mas é pensar no dia de amanhã, no animal a surgir ao fundo, no doutor a aproximar-se, a aproximar-se, no bicho a olhar de frente, no bicho a ganhar alento, a fazer o seu reconhecimento, a atravessar o campo na direcção da água, e o doutor a atirar. Bum! Ouço o segundo bum, bum, e o baque do bicho, primeiro ajoelhado, depois o corpo pesadão a cair por terra. Como lá, no tempo em que nós estávamos lá, os três...”E Petit entrou pela porta da sala do bilhar e voltou, trazendo nas mãos três coletes, três chapéus, três carabinas, sendo só a Winchester para funcionar na manhã seguinte. As outras duas armas iam ser levadas só por companhia. Estavam conscientes de que não havia rigor no que iria acontecer. Era apenas uma imitação do que acontecia lá, um matar saudades de andar com aquilo nos braços, diante do exemplar mais nobre dos cinco grandes, sem terem de se deslocar mais do que umas dezenas quilómetros. E para expor esses adereços, Petit fez desandar o tabuleiro sobre a mesa e empurrou o telefone para o lado. Fortaleza ainda disse – “ Mesmo assim, é injusto ter-me dito aquilo, doutor, eu fiz tudo para que este momento fosse possível. Há três semanas que não faço outra coisa senão preparar o dia de amanhã”.E era verdade.Três semanas antes, precisamente, enquanto o proprietário da casa e Petit jogavam um partida sobre o pano verde da mesa do bilhar, Fortaleza bebia o seu uísque e folhava o seu jornal desportivo, e fora aí, numa das últimas páginas, que havia encontrado a notícia a quatro colunas, com foto e legenda, uma pagela larga sob um título de grande destaque, a chamar a atenção para certo facto. A notícia do facto vinha encimada por um título inconcebível. O título dizia – Rei de Sofala Vai a Abater. E no continuado – O Rei de Sofala, como era conhecido por todos, o soberbo leão oriundo daquela antiga província, inquilino do Zoo de Lisboa há mais de quinze anos, atacado de doença, vai finalmente a abater... Seguia-se a história genealógica, ascensão e queda do respectivo exemplar, uma retrospectiva de vida que ia desde o momento em que havia chegado, ainda adolescente, ao curral onde tinha vivido, comido, acasalado, entristecido, e por fim adoecido, e de onde agora saía para morrer. Calculava-se que ao longo de quinze anos, cerca de dez milhões de visitantes o haviam admirado, tantos quantos os habitantes de Portugal. E a notícia terminava com uma nota implacável, com seu requinte de malvadez medieva–No local do abate, disputa-se quem irá dar o golpe de misericórdia final a tão ilustre felino. Fortaleza havia lido várias vezes toda aquela matéria espúria, até que por fim tinha compreendido e havia berrado – “Miseráveis!”Havia estendido a folha de jornal sobre a mesa verde, fazendo suspender a partida – “Miseráveis, miseráveis! Leiam isto aqui...” Debruçados sobre a página, Petit e o anfitrião tinham-se inteirado do teor da notícia e tal como Fortaleza haviam sentido a mesma perplexidade e a mesma revolta. Tinham vislumbrado um canto qualquer, talvez um canil, talvez um gatil da Câmara Municipal de Lisboa, só Deus saberia como e onde, mas por certo um espaço diminuto, húmido, sombrio, sem honra, onde iria ser abatido um animal daquele porte, às mãos dum magarefe qualquer. Então Fortaleza tinha dito – “Eu seja da cor desta mesa se não conhecer uma pessoa do Jardim Zoológico que me dê este animal”.Santos Manuel, porém, bateu na bola, fez carambola, deixou lá duas bolas dentro do buraco, e só depois disse – “Uma afronta, estou disposto a fazer o que for preciso”.“Mas porquê?” – tinha perguntado Orlando Petit. “Pois somos nós, por acaso, os donos do bicho?”Só nesse instante, olhando para o anfitrião, Petit havia compreendido o verdadeiro sentimento de ultraje que atingia os seus amigos. Ele próprio tinha dito – “Que estúpido! Compreendo, é para o doutor o abater com dignidade. Pois vamos em frente, eu vou também...” E fitou com toda a inteligência da sua alma a imagem do leão de Sofala, captada nos tempos áureos do curral, uma bela fotografia reproduzida a três colunas, ao alto da página. Bela juba, belo nariz, belo olhar enviezado, um olhar cheio de cólera desprevenida, como se não se encontrasse em cativeiro, um olhar de bicho pronto para atacar o quer que se movesse no mundo. Um belo ódio de animal destemido. Como estaria ele agora? Como teria um leão daqueles envelhecido, depois de ter ficado prisioneiro durante toda a vida? Nenhum dos três conseguia imaginar.A verdade é que nessa mesma noite, Fortaleza começou a fazer telefonemas, e Petit retomou velhos contactos. Fortaleza tratou da questão do Zoo, Petit falou sobretudo com gente ligada a transporte de animais. Tão eficazes os telefonemas, que no fim-de- semana seguinte, já o mais importante se encontrava tratado. Fortaleza já tinha tido acesso à ficha clínica do bicho, já sabia que o bicho apresentava uma deficiência grave no olho esquerdo, uma catarata de dimensões invulgares, encontrando-se felizmente o olho direito em estado bastante saudável. Também arrastava uma pata de trás. Às vezes arrastava o quadril e a pata como se os quisesse largar, mas de resto mostrava-se apresentável. Não apresentável para se manter em exposição dentro duma jaula, mas suficientemente apresentável para travar um combate digno, no momento do seu próprio abate. Em vez de tombar sob o impacte duma bala assassina, disparada sob o efeito dum gatilho premido por um bruto qualquer, que tanto podia atingir o bicho como um fardo de palha ou um monte de trapos, em vez disso, era possível, a troco de certa soma, fazer viajar o bicho clandestinamente dentro duma camioneta de transporte de cavalos até uma quinta das redondezas que oferecesse as condições necessárias. E a Herdade da Silveira, inóspita, selvagem, desactivada, reduzida durante os últimos anos a uma modesta criação de avestruzes, oferecia ao mesmo tempo a planura e os cômoros necessários para o efeito. Fora nesse entendimento que Fortaleza negociara a pernoita do animal a troco de cinquenta contos. Ninguém poderia imaginar que o preço fosse aumentando à medida que o administrador inventava perigos que correriam as aves, quando afinal a criação se resumia a uns trezentos bicos mal emplumados. Fortaleza não imaginava que o montante fosse subindo, à medida que se falava dum duplo círculo de arame necessário para albergar o velho felino, à medida que o próprio Fortaleza exigia uma celha especial para a água, e outros requisitos imprescindíveis. Mas também a Petit, encarregado do transporte, a vida não havia sido facilitada. As poucas viaturas de que o país dispunha para fazer deslocar cavalos, pareciam estar todas tomadas com corridas no exterior. O amigo que lhe tratava desse aspecto oferecia-lhe em troca um carro de transporte de suínos, situação que seria devidamente salvaguardada com a colaboração da Guarda local. Nesse ponto, fora o próprio Santos Manuel quem não havia estado de acordo. Não admitia que um leão com aquela envergadura e aquele passado viajasse numa viatura destinada a suínos. Seria o mesmo que salvar o bicho duma humilhação para lhe infligir uma outra, e ele não saberia dizer qual delas seria a mais grave. De asco, havia cuspido no chão. Fora então encontrada uma terceira via. Consistia em fazer viajar o animal dentro duma caixa de transporte de carne recentemente desactivada, com a vantagem de oferecer condições de dignidade à altura de albergar o grande gato da selva em viagem. Acontecia, porém, que esse transporte corria sérios riscos de ser apreendido, e se tal acontecesse, a ilegalidade seria grave. Para tanto, Petit encarregou-se de estabelecer uma cadeia eficaz junto das brigadas no dia em que o animal viajasse, a troco de certo montante, e sobre esse tema, o montante, Santos Manuel sempre havia dito o mesmo – “Avance, avance, o que conta é o que está em causa. E o que está em causa não tem preço…” E o anfitrião não só tinha passado três cheques de somas avultadas, como ainda estava disposto a assinar os que fossem necessários.Esse fora o ponto da discórdia. Mas agora, que já haviam discutido o assunto, e já quase se haviam desentendido, uma vez novamente entendidos, retomavam o bom caminho em conjunto. Os três estavam de acordo, os três examinavam as armas e experimentavam os respectivos coletes à luz risonha do entardecer. A conversa assumia a coerência própria que antecede os grandes momentos de acção. Petit, que no último momento havia retomado os contactos interrompidos por Fortaleza, junto do administrador da Silveira, achou por bem fazer um último balanço da situação. Confirmava-se que o bicho havia chegado nervoso, cansado, esfomeado, respirando sacudidamente, mas ele havia pedido que lhe fosse servido um bom naco de carne, tendo sugerido mesmo que lhe dessem antes uma ave, ou mesmo duas aves. Havia precisado que não importava que fossem vivas ou mortas, mas se possível que fossem vivas, atadas pelas patas. O importante é que alimentassem o bicho. Quanto a água, nada. Tinha ficado combinado que a água ficaria para o dia seguinte, para a hora do acontecimento. Estava confirmado que o bebedouro fosse uma celha que se visse, pois o bicho precisava de sentir a água, e já não tinha boa vista, melhor dizendo, tinha má vista, só um olho funcionava. Tinha mesmo dado a indicação de que entre uma celha comprida e uma celha quadrada, seria preferível a quadrada, uma vez que a Herdade da Silveira, infelizmente, não dispunha de um bom espelho líquido. Em suma, o bicho teria a sua refeição de fim de dia, disporia de um recanto afastado das aves corredoras para poder passar a noite em paz, teria o seu recanto calmo de pernoita, e seria solto pelas oito horas da manhã, ficando a celha de água, para a qual seria suposto dirigir-se, suficientemente longe do local do amalho a fim de tornar possível acontecer a caçada.Petit falava baixo – “Estou a ver o animal ainda com uma bela juba, a dirigir-se para o espelho de água. Estou a vê-lo de narinas no ar, a sentir à distância a emanação do líquido...”Também João Fortaleza, reconciliado com o antigo director, tinha-se posto a sonhar em voz alta – “Pois então, pois então. Um bicho fica cego e trôpego, mas até ao último dia de vida, tem os instintos por si. O problema da vida de um homem é que acima do instinto tem a honra. O dever de um bicho é seguir o seu instinto. O dever de um homem é contrariá-lo. Pergunto-me a mim mesmo quando é que esta coisa estúpida aconteceu à humanidade…” A noite tinha descido sobre a casa. A terra quente embrulhava-se na escuridão. Os três homens sentiam-se bem, envolvidos nela. Não era necessário acrescentar mais nada para se saber que os três estavam de acordo, e todos estavam de acordo porque não diziam nada. A cumplicidade era isso. De facto, ninguém sabia quando a honra havia começado a lutar contra o instinto, ninguém sabia como nem sabia se tinha valido a pena. Talvez por isso mesmo essa luta tivesse sido a mãe da fala, possivelmente fora a honra o que teria feito falar a humanidade. Ou pelo contrário, talvez a fala tivesse criado a honra. Às vezes, em pleno Verão, esse tipo de assuntos enchia páginas inteiras de publicações coloridas. Sabedorias divulgadas em fórmulas simples, nunca muito fiáveis, mas sempre muito instrutivas. Petit lembrava-se de ter lido alguma coisa sobre o assunto, Santos Manuel não se lembrava de ter lido nada, mas ao contrário dos seus amigos, estava convencido de que a honra, ela mesma, era uma casa dentro do instinto e não uma adversária. Duvidava que assim não fosse. Quando se duvida, porém, o melhor é passar de imediato à acção, prova para todas as divagações, o que no caso concreto significava passar à preparação do dia seguinte. E a esse propósito, já ali estavam o bornal, o cantil, os fósforos, o isqueiro, a faca do mato. Lá fora o todo-o-terreno estava atestado, o motor lubrificado, tudo perfeito, tudo impecável, tudo revisionado, como lá. Só faltava agora tomarem qualquer coisa, por certo, um jantar improvisado, como lá. Quem retirou o livro de entre o tabuleiro e os coletes de caça, e o levou nas mãos para o quarto de trás, bem o sabe. Nesse instante, Orlando Petit chamou a partir da cozinha – “Já cá está. Aproximem-se para o jantar”.A refeição consistia dumas sanduíches preparadas à pressa, duas facadas em cada papo-seco, duas lambidelas de manteiga, fiambre e queijo a entremear. Fortaleza ainda andava à volta do todo-o-terreno, a lembrar o percurso real que os separava do redil improvisado onde se encontrava o animal, uns quarenta quilómetros, não mais, e já se dirigia para a cozinha, só que Santos Manuel, completamente envolvido com a jornada do dia seguinte, encontrava-se esticado na espreguiçadeira e chamou – “Porque não se come aqui? Nem mosquitos há...” Então Orlando Petit trouxe as sanduíches, trouxe os líquidos, muito gelo, e sentados na borda das espreguiçadeiras, começaram a comer curvados, a boca junto dos joelhos, como se fosse antigamente e estivessem lá. As migalhas a espalharem-se em redor dos sapatos, a serem pisadas e transformadas em nódoas pelo pavimento, mas não fazia mal, não existia ninguém por perto para os admoestar, estavam só a petiscar, estavam a jantar como naqueles belos tempos e naqueles lugares longínquos, como se estivessem lá, em pleno acampamento. Era necessário dizer alguma coisa? Não, não era necessário. Mas Orlando Petit disse - “Você deveria deitar-se cedo, Santos Manuel. Está tudo combinado. Aqui o Fortaleza carrega as armas e as trouxas, e eu vou adiante, fazendo de pisteiro. Mas você deite-se cedo, trate-me dessa pontaria. Quantas munições há?”“Não muitas. Só para aí dez vezes mais do que as necessárias...” “O que quer dizer com isso?” E os três homens, até ali completamente enlevados na perspectiva da manhã seguinte, pararam de mastigar. Santos Manuel deixou mesmo a sanduíche a meio e carregou de novo no Cutty Sark.Aliás, não era a primeira vez que Santos Manuel se deixava assaltar pela ideia de que poderiam ir encontrar o animal completamente aniquilado. Ele e os seus companheiros tinham preparado a acção no pressuposto de que o animal estaria válido para um bom enfrentamento. Mas se ao contrário do que estava previsto, o bicho não oferecesse luta? Se o bicho não se levantasse do amalho, não se movesse, ou caminhasse tão manco que nem desse para uma pessoa levantar a arma e atirar? Nesse caso o que faria? - Perguntava-se o anfitrião. Por certo que não iria abater um animal à falsa fé, não iria alvejar um bicho moribundo, fingindo que estabelecia com ele um combate. Não, não iria. Nesse caso, passaria a arma a um dos seus companheiros e um deles que o abatesse, se quisesse. A menos que ele mesmo se aproximasse do animal, e olhos nos olhos, colocados ambos numa posição de lealdade total, frente a frente, como se fosse um animal e o seu dono, ambos animais e reciprocamente donos, o abatesse por caridade. Mas só admitiria isso, no caso de o bicho sofrer.E então passava-lhe pela cabeça o desenho de um gesto muito especial. Se o bicho não se levantasse do chão, nem tudo estaria perdido. Santos Manuel aproximar-se-ia , ajoelhar-se-ia, faria descer o seu próprio corpo à altura em que estivesse o corpo do bicho, e só então iria abatê-lo, ajoelhado. E ao imaginar esse procedimento, sabia que não iria ser nem o último a proceder desse modo, nem primeiro, porque ele mesmo em pessoa, havia assistido a uma extraordinária cena dessas, lá. Por ocasião de um safari daqueles que só poderia ter acontecido, lá. A cena extraordinária ocorrera numa coutada muito especial, a mais importante de todas, aquela cujo número também se recusava agora nomear, a coutada que recebia os condes de Aznar e a filha de Franco por convidados. Daquela vez, os batedores chamavam por um leão muito especial, um bicho de juba preta, que apesar de alvejado nunca fora atingido, continuando a aproximar-se do acampamento, rugindo com um atrevimento indecente. Constava mesmo que havia devorado pelo menos um batedor, duas semana trás, e agora, vários eram os caçadores que o desejavam como troféu. O enervamento era muito, pisteiros e caçadores-guias seguiam com toda a precaução, terreno adiante. Dona Dolores Franco em seu fato de corte impecável seguia a meio da caravana. A ele, director do Banco, haviam-lhe dado a distinção de seguir muito próximo da Señora. A certa altura, o grupo tinha-se apeado e embrenhado no mato, avançando na direcção de onde provinha um som rouco, misto de rosnado e rugido, um latido soprado que fazia estremecer as ervas, o som do bicho incólume, o comedor de homens. Haviam caminhado uns trezentos metros por entre os pastos altos, com o coração a bater descompassado, mas ao contrário de todas as previsões, a meio duma clareira, o bicho havia aparecido colado ao chão, estropiado, sem se mover. Tinha a cabeça posta nas ervas secas, o corpo encostado ao pé duma árvore, e como mostra da sua bravura, só rugia e resfolegava, como se fosse um trovão, olhando em frente. Então, como ninguém parecesse disposto a abater o comedor de gente já ferido, um troféu que não serviria para nada, o acompanhante da Señora havia encontrado uma solução castelhana extraordinária. Tinha avançado na direcção daquela enorme cabeça aureolada de barba escura, que jazia a olhar odiosamente para o grupo de homens que se aproximava, ainda a farejar, ainda a soprar pelas narinas, o acompanhante havia-se ajoelhado e só depois, cara a cara, sob o risco de o bicho se levantar, correndo esse risco formidável, havia atirado aos ombros do animal. Fora um momento inesquecível, que havia testemunhado e guardado para sempre, no centro do coração memorável. Pois com as devidas distâncias, seria precisamente desse modo que iria proceder, se acaso o bicho que se encontrava na Herdade da Silveira já não reagisse, já fosse só um pobre animal cansado, colado ao chão. E pensando nessa hipótese dolorosa, o anfitrião nem ouvia Petit a dizer-lhe – “Se eu fosse a si, deitava-me já. Não se esqueça que tem de se levantar o mais tardar às cinco e meia, um quarto para as seis…”“Vá você andando, Petit, que eu ainda vou ficar mais um bocado...” Santos Manuel via-se a si mesmo a aproximar-se da Herdade da Silveira, a saltar a rede, e a deparar com um bicho moribundo. Via-se a si mesmo a atirar-se para a terra, e a encarar o bicho, a atirar-lhe ao pescoço, e ao primeiro impacto, o bicho a estender-se no solo pelado e a entregar a alma ao chão. Mas também poderia não ser assim. Porque estava a agoniar-se estupidamente?
Pensando com objectividade, nem havia motivos para tal receio. Pelos dados de que dispunha, tinha todas as razões para imaginar um bicho com todos os instintos ainda intactos. Aliás, a acção havia sido planeada nesse pressuposto, e por isso, melhor
fora pensar que na manhã seguinte estaria à altura de se honrar a si mesmo e ao bicho. Melhor fora pensar na localização do bebedouro, pois era verdade que os animais acordavam e dirigiam-se para a água, e ao caçador competia colocar-se nessa perspectiva. Para tanto também tinha de imaginar a direcção da brisa, que a continuar assim deveria ser de viração, e à cautela iria ter de caminhar contra o sentido do vento para que o cheiro de homem não atingisse o animal antes do momento de contacto, cumprindo as boas regras da caça. E estava a pensar nisso, com o bornal e os demais objectos ainda espalhados sobre a mesa, quando ouviu Fortaleza chamar.“Quer dizer que o doutor, numa noite destas, não se vai deitar?”Aí vinha ele outra vez - “Vou sim, estou só aqui à espera que a lua nasça”.“Já nasceu, doutor. Então não vê o campo todo iluminado?”“Esteja tranquilo, estou aqui e já estou indo para a cama... Mas fale baixo, homem, você agora tem a mania de gritar”.Fortaleza a insistir – “Sabe como é, convinha descansar numa noite destas...”“Está bem, está bem…”Caminhariam os três contra o vento, para que o bicho não se excitasse antes de tempo, e para se colocarem no lugar certo, sairiam pela madrugada. João Fortaleza poderia estar descansado, sobretudo se desaparecesse do vão da porta onde se encontrava especado. “Vá você andando, homem, vá, vá…” Nessa altura o anfitrião olhou para o céu e viu a Lua no alto, um grande minguante em forma de batata amolgada, viu-a a olhar para si, e achou graça. Achou graça por vários motivos. Primeiro porque não tinha dado pelo trajecto do astro, pois tinha subido até ao meio do céu e ele ali, espapaçado na espreguiçadeira, nem tinha dado por nada. Mas a segunda razão era bem mais interessante, pois fora aquela, precisamente, a Lua da sua primeira caçada, fora ela mesma, e agora a gaja, como se o tempo não tivesse passado, ali estava outra vez a olhá-lo. Caramba, como se lembrava. Não deveria lembrar-se, mas lembrava-se. Lá, dessa primeira vez, tinha passado a noite ao relento, a olhar para esse círculo comido dum lado, cor de batata crua, enquanto Fortaleza e Petit dormiam na tenda ao lado, e de vez em quando um deles acordava para lhe vir dizer que se deitasse.Mas nessa noite longínqua não fora necessário deitar-se. A madrugada havia surgido, e ele, completamente em forma, sentira-se como se tivesse acabado de nascer, ao saltar para a viatura. Fora então uma jornada memorável. Não deveria lembrar-se. Lembrava-se. Lembrava-se do cheiro cruzado dos fenos, da marcha solene dos carros, da paragem, da apeação, do embrenhamento no mato, e depois, do momento crucial da sua primeira experiência de contacto, quando havia enfrentado pela primeira vez o gatão extraordinário que lhe surgira na frente. Santos Manuel havia avançado em relação ao caçador profissional, e tendo deixado o grupo uns passos, tinha ficado a cem metros do fantasma que se apresentara primeiro de trás, depois de lado, depois de frente, e ele havia sentido o coração bater como se fosse um momento de núpcias e estivesse diante do colo da amada, diante do sexo duma amada outra que não fosse mulher, que não tivesse rosto nem cintura, só tivesse sexo, pulsante, indomável, que o chamasse para dentro da seu lugar de prazer absoluto, e em frente do qual fosse necessário envolver a vida, e não fosse necessário sobreviver, fosse até desprezível sobreviver. E então, com a carabina apontada face a essa fonte de prazer, esse corpo de confronto em relação ao qual ele não sabia onde começava o que era seu e até onde vinha ter o que era de outrem, havia disparado sobre o fantasma fulvo que lhe aparecera em frente do seu caminho, como se fora sobre si mesmo, levantara os braços à altura das sobrancelhas, unira as pernas e sentira-se completamente molhado. Quando se havia voltado, tinha atrás de si os carregadores, o pisteiro, o caçador profissional, e lá muito atrás, os seus dois amigos, Fortaleza e Orlando Petit de carabinas levantadas. O que tinha acontecido ele não saberia dizer. O vício começara aí. E agora lá estava ela outra vez, a Lua, amolgada dum lado, a entrar-lhe pelos olhos, a fechar-lhe os olhos, a dizer-lhe amanhã é já hoje, já aqui não estou eu, já desapareci do céu, não adormeças nunca, que já vai amanhecer. Santos Manuel obedeceu, ergueu-se da espreguiçadeira, pegou na arma, fez mira na direcção da lagoa, correu em volta sobre a linha escura das oliveiras, sentiu o olho e e o dedo implacáveis, a mão direita grossa, o pulso direito grosso, cobertos de sardas, prontos para tudo. Então era preciso avançar para o duche, pois o céu, no quadrante nordeste, não tardaria a mostrar uma mancha clara. E os seus amigos, dentro de casa, já faziam os barulhos do costume. Equipavam-se ruidosamente como era seu hábito.
“Vamos?” – perguntou Petit.“Vamos. Levo comigo três carregadores cheios, vinte e quatro balas”.“Dê-me cá um” – pediu Petit. “É só para sentir o metal.Encontravam-se entre a sala de bilhar e a cozinha a comerem directamente do que havia no frigorífico. De resto estava tudo preparado, cada um sabia que arma e que bornal carregar, cada um sabia que tarefa desempenhar e missão cumprir. Cada um ocupou o seu o lugar no jipe, cada um ficou entregue aos seus pensamentos. Se falassem, seria para dizerem que não poderiam falar. Caminhavam para Nascente, precisamente para o lado de onde a manhã haveria de clarear. Tinham bastante que correr. Durante o percurso, encontraram um café já aberto à beira da estrada e até sentiram conforto pelo facto de estarem aviados quanto a comida, o bornal de cada um bem reforçado. Assim não precisavam de parar. Orlando Petit ainda disse – “Por mim parávamos para um café”. Mas Fortaleza não estava de acordo, e nem abrandou. Percebia-se que continuava desconfiado em relação aos preparos.“E você Santos Manuel, o que acha?”“Por mim, também acho que chegar cedo é melhor do que chegar tarde...”“Vamos então indo. Temos café no bornal”.E aí tinham abandonado a estrada principal e haviam-se metido pelas carreteiras de terra batida, lisas, direitas, a perder de vista, com a manhã já a desenhar um traço cor de malva por cima da planura. Na semana anterior, Fortaleza havia ensaiado o caminho, um belo caminho como se fosse um mato aberto de lá, e por isso agora avançavam seguros, passando por entre duas filas de arame farpado, com o sentido colocado naquilo que os iria esperar dali a uns quilómetros mais. Mas de súbito, perceberam que não estavam sós na planura. Como se saído da própria luminosidade fosca da madrugada, um carro de caixa aberta vinha em sentido contrário, avançando pela mesma carreteira de terra batida, e à medida que se aproximava revelava o tipo de carga que transportava. De facto o material que trazia em cima era absolutamente espúrio. Em cima do carro aberto, vinham cabeças de mulher que se agitavam e levantavam os braços, à medida que o encontro se tornava inevitável.“Que vida a nossa. Querem ver que é um bando de pegas? Era só o que faltava...” - disse Fortaleza, começando a abrandar a marcha.De facto, o carro aberto avançava a meio da carreteira sem dar passagem, e agora ambos os carros paravam a meio, mesmo em frente, um e outro entalados entre as bardas de arame. Se as gajas estavam próximas duma carreteira larga, porque tinham avançado? Santos Manuel impacientou-se – “Passe por cima, passe por cima...” “Isso é uma boa forma de dizer, não é?De facto as mulheres, todas elas aparentando estarem ainda na casa dos vinte anos, exuberantes, com grandes trunfas de cabelo ripado, agitavam-se na caixa aberta, cheias de alegria e adereços extravagantes. Gingavam as sete ou oito que estavam na caixa e gingavam as três que vinham sentadas na cabine. O perigo de ficarem ali encalhados era iminente, pois nunca se sabia quando aquele pessoal poderia vir bêbado, nem se vislumbrava como poderia o todo-o-terreno dar a volta por perto. Como iriam fazer uma marcha-atrás até ao fim da carreteira? Foi Petit quem teve a ideia. Saltou fora do jipe e disse – “Miúdas, sabem onde vamos?”“Caçar!” – disseram várias.“Mas não sabem o quê, pois não?”“Não!”“Vamos caçar um leão”.As raparigas pareciam possessas de alegria. Riam desalmadamente, contorcendo-se em cima da caixa. Algumas delas não eram portuguesas, mas só se reconhecia pela fala, de tal modo vinham pintadas e despenteadas, cheias de fitas e pulseiras. “Onde vais tu caçar um leão?”“Afastem-se para o lado, ou recuem até lá adiante, e sigam-nos se quiserem ver o que se vai passar. Um leão verdadeiro...”“Tu a caçares um leão? Aqui nesta terra?”E as moças riam sem parar. Mas a condutora, que parecia estar praticamente nua dentro da cabine daquela carripana, só coberta pelos cabelos, como uma sereia, gritou – “Não convides, não. Olha que vamos mesmo ver essa tua cena! Queres ver como vamos? ” E já tinha começado a recuar, enquanto o jipe de Fortaleza avançava em frente, focinho de viatura contra focinho de viatura, até ao fundo do caminho. Duas manobras perfeitas, se não fosse a poeira.Quando os carros se cruzaram, uma delas, sem dúvida brasileira, gritou para dentro do jipe – “Vai jogar a última partida do Império Português, seu moço? Vamos ver como você joga isso ...”“Olha que ela aqui é formada em ciência histórica, pequeno. Ela sabe do que fala...”E aquele molho de mulheres preparava-se para dar meia volta e seguir o jipe, no meio da galhofa geral, quando Petit alcançou a espingarda e ordenou – “Para trás! Suas pegas desgraçadas! Voltar para trás, já, já!” E como Fortaleza tivesse descido do jipe e apontasse também na direcção das suas trunfas desfeitas, o carro de caixa aberta pôr-se em andamento pela carreteira adiante, tombando aqui e acolá, levando consigo as raparigas que se desequilibravam e gritavam como possessas. Algumas delas não conseguiam desviar os olhos dos canos das armas que lhes eram apontadas e levantavam os braços em gesto de rendição. Quando o carro com as mulheres ficou pequeno, um insignificante brinquedo a caminho do horizonte, Santos Manuel não conseguiu deixar de dizer – “Mau encontro, num dia como o de hoje. Vamos em frente”.“Não quer dizer nada, doutor, nem sequer estamos atrasados. A esta hora ainda o bicho dorme na palha” – disse Petit.“Isso diz você. Mulher metida em assuntos de caça traz sempre tragédia, mesmo quando é caçadora. Se uma pessoa lê o Hemingway percebe logo isso mesmo”. “Safa! Se eu voltasse a ler livros, esses não leria eu por certo” – disse Fortaleza, e mudando de tom, acrescentou – “Será que deram mesmo as aves ao bicho? Você não pode confirmar, pois não, Petit? Vão ver que ainda nós vamos pagar uma refeição que não existiu. Era tudo isso que eu queria confirmar, mas logo apareceu aquele bando de garças”.“Vamos em frente” – repetiu o anfitrião. Agora já caminhavam em terrenos da Herdade da Silveira, já se via a demarcação da propriedade, ainda que só a partir de um bom par de quilómetros se avistasse o vulto da moradia ainda mergulhada na planura amarelo escuro, sobressaindo do que deveria ser um súbito molho de árvores. A partir daí, na direcção nascente, é que se estendia o vasto domínio da propriedade ocupada com a criação, e nele circunscritos, uns dez hectares de terra lisa, bardados por duas fieiras de arame, haviam sido reservadas ao animal, por uma noite e um dia. Dentro desse recinto largo, a um canto, separados por um murete e uma outra sebe de arame, também por uma noite e um dia, estavam guardadas as avestruzes. Seria na descida suave que o terreno apresentava a sudeste que deveria encontrar-se a celha com água. A leve aragem da manhã que acabava de romper soprava exactamente desse lado, tal como esperado. Fortaleza tinha estacionado o jipe para verificar de longe se tudo estava conforme, desconfiado, como se até os declives e a brisa pudessem ser vigarizados pela administração da herdade. Petit e Fortaleza ainda trocavam palavras entre si, Fortaleza carregando duas armas, a sua ao ombro, a Winchester Magnum ao colo. Santos Manuel não dizia nada. O anfitrião tinha saído para fora, tal como os seus companheiros, todo vestido de verde lodo, o chapéu debruado a couro bem enterrado na cabeça, e só olhava em volta, olhava, olhava. Sim, não se importava de gastar naquele encontro oitocentos contos bem contados, mas pensando bem, que diferença fazia de tudo aquilo que haviam deixado lá. E ou fosse por essa comparação decepcionante, ou por se lembrar ainda do encontro com as mulheres da caixa aberta, sentia um frio entrar-lhe pelo coração dentro. Pois o que lhes tinham dito aquelas gajas da vida? Nada de importante, e no entanto continuava a sentir-se perseguido por aquilo que sentia ser a malvadez do seu riso. Estava a pensar nisso, e a mexer nos bolsos onde guardava o carregador suplente, quando um rapaz numa motorizada parou para dizer - “Já ele se levantou. Querem ver?” E entregou uma espécie de binóculos a Fortaleza, que se pôs de imediato a lobrigar ao longe. “Se é o que eu estou a ver, estamos a ficar atrasados”.“Posso ir ver a caçada?”“Não podes, não” – disse Petit. “Dar caça ao leão não é o mesmo que mugir uma vaca. Acho mesmo que deves parar de andar com essa coisa ruidosa aqui por estes lados. Se for preciso pagar para daqui em diante estares quieto, e não deixares ninguém se aproximar, até pagamos. Compreendes? O que está combinado é que toda esta zona a partir dali se encontra isolada desde que o bicho chegou. E estará enquanto o bicho, vivo ou morto, aqui ficar”.E os três homens, abandonando o todo-o-terreno, e carregados com os seus kits de caça, começaram a andar na direcção da zona bardada, a andar em silêncio, na manhã que subia. Santos Manuel ia à frente, não era o que estava combinado, mas ia, de cabeça baixa, a cortar a brisa, a atenção completamente concentrada no que se passava entre os seus pés e o que esperava encontrar. Como estaria o que iria encontrar? Como estaria? À aproximação daquela zona, sentia o coração pular desordenadamente, por estupidez, por desmazelo em não ordenar os pensamentos. E então aproximaram-se os três, ao mesmo tempo, e viram a celha e apertaram as mãos. Apertaram as mãos, porque lá estava, à luz do dia, a forma cabeçuda do fantasma a deslocar-se no pasto. Os três emudeceram. Petit disse muito baixo– “Apetecia-me fazer uma coisa que não faço há muitos anos, apetecia-me benzer-me”. E benzeu-se.“Oh! Oh! Lá vêm mas é oitocentos contos a mover-se na direcção da celha. Se eu pudesse ter adivinhado, não me tinha metido nisto nem tinha mostrado ao doutor a notícia do desportivo…” – disse Fortaleza.Mas o anfitrião nem os ouvia. Naquele momento, encontrava-se muito longe, lá , entre as folhas do Atlas Planeta Agostini, uns 23 graus na Latitude Sul, embora continuasse com um olho na arma que Fortaleza levava ao colo, e o outro no bicho que se movia lentamente na direcção da celha, arrastando uma das patas de trás, com a cabeçorra toda virada de lado, dando a impressão de que não era um mamífero mas um peixe quando perde a noção do equilíbrio, e antes de morrer, começa a nadar de barriga para cima. Pois o felino caminhava todo torcido, caminhava com dificuldade, dando umas passadas trôpegas e parando, como se fosse a cada momento deitar-se de novo no chão pelado. A meio do corpo, a pele da barriga pendia como um trapo suspenso, e agora, que o animal insistia em avançar na direcção da água, a cauda, vista de lado, assumia a forma de um farrapo teso e pardo, incapaz de qualquer movimento. Fosse como fosse, não era ali que Santos Manuel se encontrava, era lá, muito longe, num espaço muito vasto, e era de lá que lhe vinha a solução, a última, a péssima, aquela que na noite anterior tinha imaginado em desespero de causa. Então, como o animal traçasse a sua caminhada ziguezagueante na direcção da celha, indiferente ao que quer que fosse, e nem farejasse na direcção dos seres humanos que eles eram, os três caçadores, que avançavam paralelamente pelo lado exterior da rede, caminharam mais depressa, de modo a assistirem à dessentação do bicho. De facto ao chegar junto da celha, que afinal sempre era quadrada, o animal nem se virou, mergulhou imediatamente o focinho na água, e como um velho gato que não se refresca há muito, bebeu longamente. Santos Manuel pensou – “Agora vai virar-se...” E o bicho virou-se e mostrou à claridade da manhã a face amarrotada. Os cabelos longos do cativeiro pareciam fiapos que tivessem sido chamuscados. Nem a pose era altiva, porque olhava só de um lado, parecendo um peluche velho esfrangalhado pelas mãos dum gigante. Àquela hora da manhã, ainda nem eram nove horas, e já tinha a língua pendente, a língua vermelha, era a única coisa que luzia na paisagem, mas também essa desapareceu. “Não vai aguentar” – disse para si Santos Manuel. “Vai tombar de focinho diante dos caçadores, pois vai...” E de facto o bicho curvou-se e ficou a olhar, a olhar pachorrentamente, parecendo não ver nada, cobertos que estavam os olhos pelas pálpebras grossas, e depois, ali mesmo diante dos seres humanos, pareceu estar a ponto de dormitar. “Que desilusão, oitocentos contos espojados no chão…” – Ouvia Fortaleza dizer, um palmo acima da sua cabeça, ouvia mas não ligava. Até porque Petit, também ele decepcionado, tinha outra interpretação – “Temos de admitir que o bicho se amansou, durante quinze anos de exposição. Não é verdade? Dez milhões de pessoas olharem para ele…” Enquanto o anfitrião pensava - “Isto é, eu vou entrar dentro do campo bardado, vou avançar na direcção do animal tanto quanto puder, e aí, a poucos metros, abato-o. Abato-o como fez o acompanhante da filha de Franco, ajoelhando-me diante do adversário, abatendo o adversário frente a frente, falando com ele de igual para igual…” E retirando a Winchester das mãos de Fortaleza, que continuava a transportá-la ao colo como se fosse uma criança, Santos Manuel avançou.“Pois onde vai?”- tartamudeou Fortaleza, com a sua própria arma em guarda. “Não me diga que vai entrar para dentro da rede, não me diga...” Digo e faço, pensava o anfitrião. Digo e faço.E Santos Manuel pôs-se a avançar ao longo da rede de modo a alcançar a portada que dava acesso ao campo bardado, abriu a portada, encostou-a e entrou para dentro do vasto recinto, começando a sentir como se não fosse seu o seu próprio vulto verde, começando a deslocar-se na direcção da zona da celha onde o animal se encontrava, estendido ao sol. A deslocar-se. Ainda estava a uma distância de uns cento e vinte metros, cento e dez, mas não poderia atirar a menos de uns cinquenta. No estado em que o bicho se encontrava, só a partir de cinquenta ou mesmo quarenta, ocorreria um enfrentamento leal, e então começou a avançar passo a passo, seguido pelos seus dois companheiros, que faziam o mesmo percurso, mas do lado de fora da rede. O anfitrião avançava. Todo o seu olhar estava posto na silhueta decrépita do animal do zoo, e mesmo assim dava para perceber que a sua atitude estava iluminando a vida dos seus companheiros que caminhavam ao lado, para além da malha de arame. Mas o importante era concentrar-se e avançar ainda mais, avançar tanto quanto fosse possível, até porque naquele instante o bicho tinha virado a cabeça e contemplava o avanço do caçador, sem reagir. Era isso, o anfitrião podia mesmo flectir os joelhos, e a partir deles atirar à altura da cabeça do bicho, podia até mesmo ajoelhar-se no chão, tal como o acompanhante de Dona Mercedes Franco, naqueles saudosos dias passados lá. Porém, tal não chegou a acontecer. Pois de súbito, o animal esquadrilhado levantou-se, endireitou as patas, endireitou a cabeçorra despenteada, os cabelos da longa juba abanaram dum lado a outro, como uma saia de farrapos, e o bicho começou a avançar na direcção do anfitrião. E Santos Manuel que fora um caçador experimentado, reagiu de imediato, apontou na direcção dos ombros do animal, e o tiro passou muito acima do alvo. E ele pensou – “Meu Deus, falhei, mas não falho mais…” E outro tiro, e outro partiram, sob a pressão das suas mãos esforçadas, e nada, era como se os tiros não partissem, as munições se tivessem transformado em bombas de Carnaval, sem impacte nem direcção, e o alvo activo, concreto, feito de ossos e pêlos, continuasse a avançar incólume a essa chuva de balas que dançava dum lado a outro para nada. Santos Manuel ouviu dizer do lado de fora da rede – Ah! E pensou que uma coisa terrível tivesse acontecido, pois mantinha a arma em riste e dela nada partia. Só que a coisa terrível seria duma outra natureza - O animal havia galopado em ziguezague, não em direcção à sua pessoa, mas de encontro ao fundo da rede contra a qual afocinhava, urrando para a planície. Fazendo vibrar a rede inteira como se lhe imprimisse uma descarga eléctrica, e não tardou que a zona da portada apenas unida cedesse, e o animal estropiado saísse para fora do arame emalhado.Então durante um tempo, que depois não saberia avaliar quanto, haviam ocorrido várias acções que ordenava da seguinte forma, ainda que não tivesse a certeza se teriam acontecido ou não por essa ordem – Fortaleza havia iniciado uma perseguição ao leão, brandindo no ar a sua própria arma sem munições, gritando atrás do animal, como se corresse atrás dum cão que lhe tivesse levado um chinelo, ou coisa que o valha, corria tropeçando e caindo, estatelando no chão o corpo volumoso, erguendo-se e perseguindo de novo o bicho do zoo, que por sua vez parecia ter asas nas patas, atravessando nas calmas o campo pelado, como se procurasse uma fuga que o levasse para lá, para o seu primitivo lugar e estivesse preso a esse azimute por um fio que o conduzia terreno adiante. O anfitrião bradava longe, de dentro da cerca, onde tinha ficado colado ao pasto - “Pare, homem, pare… Você está sem munições. Volte para trás…” Ao mesmo tempo que Petit, munido do telefone móvel, berrava a plenos pulmões que havia um leão à solta na Herdade da Silveira, pedindo que se encaminhassem de imediato para ali, para abaterem o animal que se tinha soltado sem ninguém perceber como. Petit falava aos gritos para o posto local da Guarda Nacional Republica, espalhando aos quatro ventos o segredo que estivera tão bem guardado. Petit a explicar em altas vozes que um dos seus companheiro naquele instante mesmo procurava controlar o bicho, com uma carabina sem balas. A voz de Petit a ouvir-se, feita altifalante, na paisagem iluminada. Na paisagem lisa, por onde Fortaleza já voltava, caminhando esguedelhado, sem arma, sem faca de mato à cintura, pálido como farinha, sufocado, e mesmo assim ainda a balbuciar – “Agora toda a gente vai ficar a saber, vai ser um pratinho dos diabos, vai ser um pratinho dos diabos. Vai ser, vai ser… É preciso dizer à Guarda que o tipo foi naquela direcção, além. E naquele direcção, pode haver gente a morar. Estamos debaixo de brasas…”E Fortaleza deitou-se no chão, com o chapéu sobre o peito, a arfar. Assoava-se por alguma coisa que lhe corria dos olhos – “Eu não lhe disse ontem à noite que devia dormir, doutor? Eu não lhe disse? Você não escutou…”“Fale baixo, homem, de facto você agora ganhou essa mania de gritar”.“Pois ganhou…”E Santos Manuel e Petit também eles se deitaram no chão, com os chapéus sobre o peito. Não eram capazes de se movimentar sabendo que o bicho andava à solta pela herdade fora, liberto pelas suas mãos, quando deveria estar abatido. Para além do risco que viviam, o momento tornava-se-lhes insuportável como se um tremor de terra tivesse derrocado os pavimentos interiores dos seus sítios mais amados. Três homens deitados no chão raso da Herdade da Silveira, imóveis, incapazes de falar. “Vão ver…” – disse Petit a certa altura, com o sol já a bater-lhes de chapa na cara. “Vão ver que os gajos abatem-no só com um tiro…” Falava a partir do chão. Santos Manuel sentara-se, sobressaltado. – Seria verdade? Seria que um simples agente da Guarda Nacional Republicana, que se calhar nunca havia abatido um coelho, iria dar fim ao Rei de Sofala só com um disparo? E esperou. Não poderia avaliar durante quanto tempo esperou, sentado, com o punho forte do braço direito pousado no joelho, o punho cheio de sardas, que havia falhado. À espera. Até que os três homens ouviram, bastante perto, como se o animal afinal não tivesse andado para longe, um tiro, dois, três, sete, dez, e o décimo primeiro ao mesmo tempo de um décimo segundo, talvez. Teriam contado bem? Tinham, sim. Fortaleza atirara fora o chapéu e também se sentara. Assoava-se para o chão.“Doze, doutor, foram precisos doze…” “Parece que foram…” – disse Petit. Estavam sentados no meio dos objectos de caça, espalhados em redor como num campo de batalha. Caramba, doze tiros. Convinha não esquecer que os bornais tinham vindo bem fornecidos. O anfitrião, afogueado pelo calor do sol que subia sem parar, pegou no seu bornal e procurou o frasco do uísque bem como os frascos do gelo cujas tampas se transformavam em copos de campanha. Serviu os três copos, estendeu-os, e antes de abalarem ao encontro dos guardas e do animal abatido, a que tinham de dar um destino, muito antes de voltarem para o pátio da casa onde os esperava o aceno da lagoa, a sombra das telhas, o tabuleiro preparado, a mesa, o livro, o regaço onde ele pousava, o silêncio de quem o lia quando os três falavam, antes, muito antes desse regresso, era preciso beber um belo gole pelo velho bicho que afinal se tinha batido denodadamente, em campo aberto, diante de dois grupos armados. Não fora para salvar o animal da desonra que os três se tinham metido naquela empresa? Naquelas circunstâncias, quem fora o autor material dos disparos não tinha importância, era apenas um sujeito na cadeia da decência. Disse Santos Manuel, ainda que soubesse, os três soubessem claramente, que tudo havia acontecido por alguma coisa mais – Um desejo, um desejo sem preço… Mas sobre esse outro lado daquele encontro, enroscado no fundo do coração, ninguém podia falar em voz alta.O anfitrião disse – “Vamos a isto…” E acrescentou – “Uma vergonha. Éramos quatro, da mesma idade. Mas só um de nós se portou bem. E foi ele…” “A ele, ao bicho...”Disse Santos Manuel, com os olhos fechados na pele rubra. Petit também estava desfigurado, mas procurava recompor-se arrumando a alça da arma sobre o colete. Procurava saltar por cima de alguma coisa que ficava muito acima da altura real das suas cabeças - “Olhe, doutor, se isto se souber e for publicado, nós ralados, compreende? Quem se rir de nós é porque nunca esteve lá… Olhe, doutor , deixar os outros rirem de nós também é um acto de caça. Vamos embora…”Tinham levado aos lábios os copos de metal gelado. Tinham-nos guardado. Agora avançavam na direcção de onde havia soprado o som das armas, descendo apressados pelo campo, contornando a rede das avestruzes. Eram onze horas em ponto. Cigarras cantavam como loucas. A jornada ainda não tinha terminado.


Lídia Jorge

In O Belo Adormecido, 2004, Publicações Dom Quixote